Democratas de pacotilha


O democrata de pacotilha anatematiza quem se lhe opõe com o libelo das intenções. Trata-se de uma arma muito em voga, seja na vida pública, seja na vida de instituições ou empresas


O democrata de pacotilha não é democrata, apenas finge, porque lhe convém ou porque tem receio de se revelar. E há casos em que julga que é e não percebe que não é, porque não sabe o que é ser-se democrata. No primeiro caso é pérfido, no segundo é tolo, mas em ambos trata a democracia apenas como uma palavra que usa ao sabor das conveniências ou apenas porque sim. Mas, seja pérfido ou tolo, tem e usa as suas armas, das quais me ocorrem três como as principais. Uns preferem uma ou duas delas, e os mais refinados recorrem às três. São elas: o processo de intenções, o dogma do consenso e o bicho-papão da rutura, todas velhas de séculos mas ainda eficazes, sobretudo para plateias superficiais, medrosas e/ou negociadoras em excesso, ou (em combinação letal) todas estas coisas. 
Quando o que os outros defendem não lhes convém ou não vai ao encontro da sua visão iluminada, os democratas de pacotilha traçam logo o processo de intenções, segundo o qual quem defende o diferente tem uma agenda, um propósito inconfessado ou visa satisfazer interesses particulares. Em vez de discutir as questões e os argumentos, e de aceitar o desafio com lealdade e transparência, o democrata de pacotilha anatematiza quem se lhe opõe com o libelo das intenções. Trata-se de uma arma muito em voga, seja na vida pública, seja na vida de instituições ou empresas. Quem não é por nós está contra nós e, pior, alimenta uma agenda. Um destes dias, por exemplo, um habitual opinativo sobre a justiça dizia que outros, que defendem coisas diferentes daquelas que ele defende ou lhe pedem que defenda, não eram mais do que um coro oportunista de interesses particulares. Claro que sim, senhor opinativo, faça processos de intenções que pode ser que lhe renda o exercício, e sobretudo dá muito menos trabalho do que discutir questões e argumentos, para já não falar em limpar e polir o espelho em que se vê.  

Quanto ao dogma do consenso e ao bicho-papão da rutura, que muitas vezes são faces da mesma moeda com que se manipulam processos aparentemente democráticos, o uso também prolifera em muitas arenas que se queriam de debate e de decisão livres. E quando o libelo das intenções não chega, então o uso torna-se intenso – e mais refinado ou menos, consoante as artes e a inteligência de quem assim esgrime. O consenso é uma coisa virtuosa, como é óbvio, mas só se o caminho para lá chegar for aberto e dialogante. O que o consenso não pode ser é uma arma de arremesso contra a verdadeira discussão e, sobretudo, não pode ser a arma que se dispara, aqui-d’el-rei, logo que alguém não concorda. Como se o consenso fosse um pesado cobertor de papa que, em vez de aquecer, esmaga e sufoca. E daí à agitação do bicho-papão da rutura vai um passo, dizendo-se à plateia que quem discorda – animado por malsãs intenções e inimigo jurado do sacro consenso – provocará a rutura, essa temível promessa do armagedão. Claro que sim, boa, boa mesmo é a paz podre em que possa navegar com bonomia o statu quo. 

Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado

Democratas de pacotilha


O democrata de pacotilha anatematiza quem se lhe opõe com o libelo das intenções. Trata-se de uma arma muito em voga, seja na vida pública, seja na vida de instituições ou empresas


O democrata de pacotilha não é democrata, apenas finge, porque lhe convém ou porque tem receio de se revelar. E há casos em que julga que é e não percebe que não é, porque não sabe o que é ser-se democrata. No primeiro caso é pérfido, no segundo é tolo, mas em ambos trata a democracia apenas como uma palavra que usa ao sabor das conveniências ou apenas porque sim. Mas, seja pérfido ou tolo, tem e usa as suas armas, das quais me ocorrem três como as principais. Uns preferem uma ou duas delas, e os mais refinados recorrem às três. São elas: o processo de intenções, o dogma do consenso e o bicho-papão da rutura, todas velhas de séculos mas ainda eficazes, sobretudo para plateias superficiais, medrosas e/ou negociadoras em excesso, ou (em combinação letal) todas estas coisas. 
Quando o que os outros defendem não lhes convém ou não vai ao encontro da sua visão iluminada, os democratas de pacotilha traçam logo o processo de intenções, segundo o qual quem defende o diferente tem uma agenda, um propósito inconfessado ou visa satisfazer interesses particulares. Em vez de discutir as questões e os argumentos, e de aceitar o desafio com lealdade e transparência, o democrata de pacotilha anatematiza quem se lhe opõe com o libelo das intenções. Trata-se de uma arma muito em voga, seja na vida pública, seja na vida de instituições ou empresas. Quem não é por nós está contra nós e, pior, alimenta uma agenda. Um destes dias, por exemplo, um habitual opinativo sobre a justiça dizia que outros, que defendem coisas diferentes daquelas que ele defende ou lhe pedem que defenda, não eram mais do que um coro oportunista de interesses particulares. Claro que sim, senhor opinativo, faça processos de intenções que pode ser que lhe renda o exercício, e sobretudo dá muito menos trabalho do que discutir questões e argumentos, para já não falar em limpar e polir o espelho em que se vê.  

Quanto ao dogma do consenso e ao bicho-papão da rutura, que muitas vezes são faces da mesma moeda com que se manipulam processos aparentemente democráticos, o uso também prolifera em muitas arenas que se queriam de debate e de decisão livres. E quando o libelo das intenções não chega, então o uso torna-se intenso – e mais refinado ou menos, consoante as artes e a inteligência de quem assim esgrime. O consenso é uma coisa virtuosa, como é óbvio, mas só se o caminho para lá chegar for aberto e dialogante. O que o consenso não pode ser é uma arma de arremesso contra a verdadeira discussão e, sobretudo, não pode ser a arma que se dispara, aqui-d’el-rei, logo que alguém não concorda. Como se o consenso fosse um pesado cobertor de papa que, em vez de aquecer, esmaga e sufoca. E daí à agitação do bicho-papão da rutura vai um passo, dizendo-se à plateia que quem discorda – animado por malsãs intenções e inimigo jurado do sacro consenso – provocará a rutura, essa temível promessa do armagedão. Claro que sim, boa, boa mesmo é a paz podre em que possa navegar com bonomia o statu quo. 

Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado