Paulo Cunha e Silva. Um homem na cidade que queria nova

Paulo Cunha e Silva. Um homem na cidade que queria nova


Vereador da Cultura era o título que o acompanhava agora mas há muito que imaginava e trabalhava a criatividade do Porto. Morreu ontem, aos 53 anos.


Algures no período pós-Rio, o amigo Bernardo – arquitecto de coração, açoriano de vocação – garantia a pés juntos que o novo vereador da Cultura do Porto sabia o que estava a fazer. “É pessoa de muito saber”, acrescentava confiante. Tudo no Porto estava a mudar e uma das caras dessa mudança era Paulo Cunha e Silva. De outros tempos vinha a referência ao tempo em que fora figura de proa na Porto Capital da Cultura, mas a história era ainda mais antiga. Com apenas 28 anos foi comissário de várias organizações, entre as quais as fundações de Serralves e Gulbenkian. Foi responsável das áreas do Pensamento, Ciência, Literatura e Projectos Transversais em 2001 quando a cultura foi rainha no Porto. Presidiu ao Instituto das Artes entre 2003 e 2005. Foi conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Roma entre 2009 e 2012, para regressar e comissariar um extenso programa em Guimarães Capital da Cultura 2012.

Apesar de o Inverno se aproximar, o que no Porto não é de levar com calma, a noite estava amena no Candelabro. O wine-bar do Largo Montpellier convidava a conversas de copo na mão. Minutos depois de uma reflexão sobre a cultura e tudo o que desaparecera nos últimos anos na Invicta – e sobretudo sobre o que se estava a desenhar na cidade – o vereador também se juntou, com o óbvio copo e a mesma atitude na conversa que tinha no trabalho. Ou, melhor dizendo, nas paixões que alimentava.

Não tinha passado muito tempo desde a sua nomeação mas ainda assim já tinha para apresentar a devolução do Rivoli à cidade, a negociação do Teatro do Campo Alegre e a descentralização dos espaços culturais, com eventos em Campanhã e no Estádio do Dragão, entre outros por todo Porto.

As conversas regadas podem levar-nos longe e estava certo o Vinicius quando jurava nunca ter visto grande amizade nascer em leitaria. O que se falou foi do Porto, muito, com um entusiasmo que não se via nem escutava há uns quantos anos. Ficávamos por perceber, no entanto, o que raio era a “cidade líquida” de que falava insistentemente. 

Nas ruas Em Março de 2015, o Porto transbordava de emoção e vida. A unanimidade entre os agentes culturais e o público atingia quase a desconfiança. Daquela vez era a sério: Paulo Cunha e Silva era o anfitrião e o narrador da cidade. Um dia entre Serralves, a Casa da Música, o Palácio de Cristal, a Rua de D. Hugo e o Rivoli. A ideia era publicar um texto todos os dias durante uma semana, para este mesmo jornal, que incorporasse uma sugestão do vereador. Um sítio, duas páginas. De segunda a quinta-feira, um roteiro de autor, uma explicação cuidada, um pormenor surpreendente.

Podiam ter sido vários dias, com calma. Mas com Cunha e Silva muito pouca coisa aconteceu assim. E por isso lá fomos desenfreados. Raciocínios em cascata, associações improváveis, uma vertigem de informação como se a mente ultrapassasse o corpo. Dir-se-ia que estaria sempre a correr, nem que estivesse imóvel.

Da soberba casa de banho de Serralves ao Museu de Arte Contemporânea, à sala VIP da Casa da Música, foi porém nos jardins do Palácio de Cristal, numa varanda com o casario em anfiteatro sobre o Douro, que regressámos à cidade líquida. A definição, mais que qualquer teoria sociológica, resultava clara e com sentido nas palavras de Paulo Cunha e Silva: “A minha ideia de cidade líquida é que toda a cidade culturalmente é possível, a cultura pode acontecer em todos os lugares, os líquidos insinuam-se e escapam entre os territórios de possibilidade, ocupam tudo, como se uma cheia invadisse a cidade. Como na cidade há várias correntes de direcção diferente, quando duas se encontram nessa zona cria-se um turbilhão, um vórtice, e as partículas que estão em suspensão precipitam–se. É o acontecimento, o evento. O evento é a cultura, são as coisas sólidas.” 

Por fim estava percebida a ideia e ia muito além do líquido. Desde logo, Paulo Cunha e Silva apontava para um cruzamento de territórios na cidade que implicava que as pessoas também se cruzassem. O que chamava “elevador social”, do topo all the way down, onde surge o underground que gera o que eventualmente há-de estar por cima de tudo o resto. Uma espécie de ciclo contínuo da criatividade. E se o disse assim o fez. Entre as conversas lançava olhares fortuitos, rápidos, como se estivesse sempre à procura do próximo local a explorar.

Movimento Dos jardins do palácio à zona da Sé, de um lado para o outro, o Sr. Pires, com a tarefa exigente de transportar o vereador da Cultura do Porto pela cidade, lá se desenrascava pela confusão portuense. Estava habituado aos repentes e às mudanças de planos. Horas de conversa e muito para aprender. Na Sé do Porto a conversa podia ter ido mais longe, mas havia que avançar. Pelo meio, o encontro com a mãe, mas só para um beijo, adeus e até breve. Despedidas sim, mas com pressa, claro.

A publicação dos tais roteiros, já no início de Abril, coincidiu com a morte de Manoel de Oliveira. O telefonema para o autarca encerrava mais uma surpresa. Cunha e Silva tinha entrevistado o cineasta em 1992 para uma revista universitária, juntamente com dois colegas da Faculdade de Medicina. Enviou as gravações. Fez um texto e recordou os seus 19 anos: “Sempre achei que apesar de ser considerado um cineasta parado, um cineasta do plano fixo, era alguém com uma grande rapidez mental e que a velocidade dos seus filmes era sobretudo uma velocidade interior.” A conclusão lembrava alguém, e agora volta a fazê-lo. O percurso, a academia, as honrarias, como Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras de França, a par de Paul Auster, Montserrat Caballé, Sean Connery, Groucho Marx ou Quentin Tarantino. Foi reconhecido mas teria sempre mais a fazer. E mais depressa.