Robert Frank – a quem o “New York Times” chamou “o mais influente fotógrafo vivo” – faz hoje 91 anos. Filho de um grande comerciante apaixonado pela fotografia, nasceu a 9 de Novembro de 1924 em Zurique e aos 22 anos trocou a Suíça pelos Estados Unidos. Depois de uma passagem pela revista “Harper’s Bazaar” (a fotografar sapatos e outros acessórios de moda), viajou pela América e a Europa. Em 1958 lançou em Paris o livro seminal “Les Américains”, cuja versão norte-americana teria prefácio do escritor Jack Kerouac, o porta-voz da geração beat, com quem Frank privou.
“O Robert Frank é o personagem mais extraordinário que conheci”, declara o fotógrafo Albano da Silva Pereira, director do Centro de Artes Visuais (CAV), em Coimbra. A amizade remonta há quase três décadas, quando Albano promovia os Encontros de Fotografia. “Eu tinha visto dois filmes do Robert Frank e queria mostrar a obra dele, tal como mostrei a de outros mestres da fotografia contemporânea. Só que na altura ninguém sabia por onde é que o Frank andava. Muita gente achava que tinha morrido.”
Foi outro fotógrafo, o norte-americano Duane Michals, que fez a ponte. “Albano, estás absolutmente certo. Ele é o melhor. Vou-te arranjar o telefone dele”, prometeu Michals. E assim foi. “Durante um ano andei a falar com o Frank pelo telefone”, continua o director do CAV. “E um dia ele escreve-me uma carta em que diz isto: ‘Não sei porque é que vou fazer esta exposição, mas tu soas-me bem. Vou–te mandar quarenta e tal fotografias pelo correio’. Passados uns 15, 20 dias, o correio entrega-me uma caixa 50×60 da Kodak com 45 [provas] vintage dele. Sem seguro nem nada. Ninguém fazia isso, muito menos sendo já representado por uma das maiores galerias de fotografia, a Pace McGill.” Hoje, cada uma dessas imagens chega a atingir muitas centenas de milhares de dólares em leilão.
Uma selecção da troca de correspondência entre Albano e Frank, objectos pessoais, documentos, fotografias (pois claro), colagens e pequenas obras de Jane Leaf (companheira do fotógrafo suíço--americano, “uma mulher lindíssima e uma grande artista”, nas palavras de Albano) estiveram ao longo de quatro dias (até hoje) na galeria Appleton Square, em Alvalade (Lisboa). A “filtragem” deste material, assim como a sua organização, coube a Ana Anacleto, que conhece Albano dos tempos em que era uma jovem estudante de Belas-Artes e “rumava a Coimbra para ver os Encontros de Fotografia”. “Escolhi os objectos que transportam uma certa ideia de memória à flor da pele”, revela a curadora.
No entanto, esse núcleo de objectos constitui apenas uma parte da exposição “Life Goes On”, que propõe um diálogo entre o arquivo e as fotografias de Albano – e, através dele, uma reflexão sobre a relação entre a matéria, a imagem e a memória. “O Albano disse-me que queria criar dois espaços frente a frente em que de um lado houvesse a claridade – o céu, a luz e o mar –, representada por um passeio na praia, e do outro a penumbra do interior”, diz Ana Anacleto.
As fotos na praia foram feitas em Mabou, na Nova Escócia (Canadá), onde Frank adquiriu uma pequena casa de madeira junto ao mar, em 1979. “Esse passeio foi um dos momentos mais mágicos da minha vida”, confidencia Albano, que visitou por várias ocasiões o amigo no seu refúgio canadiano. “Quando fui a Mabou pela primeira vez, em 1990, levei uma garrafa de champanhe francês, e eles [Frank e Jane Leaf] fizeram uma festa. São pessoas extremamente austeras, vivem de uma forma extremamente espartana, mas são de um calor afectivo invulgar. E os diálogos entre eles são de uma criatividade nunca vista.”
Na parede oposta ao passeio à beira--mar, as fotos do interior da casa de madeira mostram um momento de rara intimidade. “A geração beat não tinha qualquer tipo de moralismo em relação àquilo a que chamamos transgressão”, explica Albano. “Isto é o Frank a enrolar uma joint enquanto ouvíamos uma música do Bob Dylan de que ele gosta muito, o ‘Love Sick’. É uma sequência muito íntima de relacionamento pessoal.”
“Uma lágrima de contentamento” “Love Sick”, de Bob Dylan, aparece também na banda sonora do filme de 32 minutos que Albano fez para homenagear Frank e que constitui o terceiro vértice da exposição na Appleton. “Inicialmente estava só previsto projectarmos o filme”, confessa a galerista Vera Appleton. “Depois é que apareceu o resto.”
“Quando Frank estava perto de fazer 90 anos, decidi oferecer-lhe um presente. De gratidão e homenagem”, recorda Albano. “E então comecei a montar um filme pegando nos registos que tenho desde 1990, em filmagem, som e fotografias, e fiz um objecto que é uma lágrima de contentamento.”
Albano também já ficou hospedado no apartamento do amigo em Nova Iorque e registou o ambiente peculiar que encontrou – as mobílias, as obras de arte, as paredes, uma escada, a divisão onde Frank trabalha e também os objectos vulgares da vida quotidiana. “Isto não tem efeitos, não quis plastificar nada”, diz o fotógrafo.
As imagens do filme são acompanhadas por uma banda sonora que inclui excertos de uma entrevista que Frank concedeu a Maria João Seixas, em Lisboa, a 12 de Setembro de 2001, um dia depois dos ataques ao World Trade Center, onde fala sobre o seu percurso, a América, a fotografia e o facto de ser judeu.
“Ele é um judeu suíço imigrado nos Estados Unidos, e isso define-o muito”, continua o amigo. “Em primeiro lugar, na forma como preserva a memória de uma forma brutal. Depois há um peso muito importante no comportamento dele, que é a morte dos dois filhos. O filho, o Pablo, morre em 95 ou 96, e a filha morre sete ou oito anos antes num desastre de avião. Isso também me comove.”
Um recluso na estrada Apesar de ser considerado uma figura mítica no panorama da arte contemporânea mundial, Frank “recusa todo o lado do espectáculo, do exibicionismo e do jet set. Para ele, o dinheiro não é um objectivo. Vive muito retirado e gosta de coisas muito simples, como cortar lenha”, conta Albano. No filme, Frank afirma: “Quando se é pobre, concentramo-nos no essencial”, uma frase que define bem o seu trabalho.
Frank e Albano têm em comum o facto de navegarem entre a fotografia e o filme – a imagem parada e a imagem em movimento. Albano trabalhou como assistente de Manoel de Oliveira e António--Pedro Vasconcelos, fixando-se depois na fotografia. Frank fez o percurso inverso: formou-se em Fotografia, ainda na Suíça, durante algum tempo foi “uma ratazana” (como chama aos fotógrafos na entrevista a Seixas) e acabou a dedicar–se ao filme. Nesse campo, a sua obra mais conhecida é “Cocksucker Blues”, um documentário sobre os Rolling Stones. Frank teve acesso ilimitado aos bastidores e às festas da banda e filmou com crueza o vocalista a consumir cocaína nos bastidores ou uma fã da banda a injectar-se. “O Mick Jagger disse que era o filme mais extraordinário que alguém lhe fez mas que, se fosse visto, eles não podiam voltar à América, portanto proibiu-o. Foi uma bronca”, explica Albano.
“The Americans”, a súmula de viagens cruzadas pelo continente norte-americano, será sempre, no entanto, considerada a obra-prima de Frank. Em 2010, o mais importante museu de Nova Iorque, o Metropolitan (“o Partenon”, nas palavras de Albano), dedicou-lhe uma exposição comemorativa.
Um dos aspectos fulcrais da obra de Frank é a sua ligação à geração beat – de William Borroughs, Allen Ginsberg ou Gregory Corso – e, em particular, ao seu porta-voz, Jack Kerouac, o autor do clássico “Pela Estrada Fora”. É natural, portanto, que “o espaço mítico da estrada” – palavras de Albano – assuma também uma forte presença na exposição “Life Goes On”. No núcleo do material de arquivo vemos uma foto rara de Kerouac a dormir – de quando o escritor e o fotógrafo viajaram juntos pela América. E nas paredes há imagens de Frank – que hoje, aos 91 anos, se depara com grandes dificuldades de locomoção – ao volante do seu carro. “Ao fim de dois ou três dias em Manhattan, preciso de ir ver o oceano”, conta o director do CAV. “Sempre que ia a Nova Iorque visitar o Frank, dizia–lhe: ‘Apetece-me comer um peixe ou uma lagosta’, e ele levava-me a Long Island. Um dia, a June disse-me que este era um passeio que o filho dele, o Pablo, também adorava.”
Albano confessa que nunca imaginara transformar a sua amizade com Robert Frank numa exposição. “Em primeiro lugar, por pudor. Isto é o meu coração. Em segundo, porque eu quase nunca o fotografava, nem à Jane Leaf. Ele não gosta de ser fotografado, não gosta de ser filmado, não gosta do mundo social. É um homem autêntico e é justamente para preservar essa autenticidade que se refugia.”