Cada degrau das escadas que dão acesso ao jardim-de-infância aproxima-nos de tudo o que é típico destes lugares: cores que nos enchem os olhos, o cheiro a papas que escapa da cozinha e o burburinho que atravessa corredores e une as salas divididas por idades e identificadas por cores. Na verde estão os de cinco anos, o que num infantário já dá direito a estatuto de “mais velhos”, mas tira a prioridade na fila para o almoço. Já perto do meio-dia, a fome é enganada com desenhos feitos a borrona e lápis coloridos. “Oh, Nicole, as árvores não são cor-de-rosa”, avisa Jéssica. “Mas eu pintei de cor-de-rosa, por isso estas árvores são cor-de-rosa”, resmunga Jéssica, recuperando o desenho que lhe tinha sido arrancado das mãos em protesto pelo aparente momento de daltonismo.
Nesta sala, as tintas misturam-se na caixa que guarda as canetas e nos desenhos assinados com o esforço de quem ainda não decorou o abecedário. Mas é à volta das mesas, em miniatura para qualquer adulto, que se dá a verdadeira miscelânea de tons. “A Jacinta é a mais escura de todos”, denuncia alguém. E ela agita as trancinhas coloridas do cabelo em sinal de concordância. “Pois sou. Eu e o Adriano.” Do outro lado da mesa, Adriano levanta a cabeça da plasticina que lhe ganha forma nas mãos, mas o assunto parece--lhe demasiado irrelevante para o desviar da sua criação artística.
O Jardim-de-Infância dos Anjos, em Arroios, divide as 100 crianças por salas consoante as idades. Nada de novo no reino dos infantários, não fosse este em particular composto por miúdos de 18 nacionalidades, incluindo a portuguesa que, apesar de tudo, continua a predominar numa das freguesias mais internacionais da capital.
O que torna esta escola diferente começa a notar-se ainda nos corredores. Os cabides individuais têm pendurados os casacos e mochilas da Maria, da Joana e do Martim, mas também do Caleb, da Yasmine e do Alfa. Quando os nomes ganham corpo, chamam a atenção alguns olhos mais rasgados, as cores que vão do claro ao escuro ou os sotaques que denunciam outras raízes. “Eu já fui à Libéria”, grita Jacinta, sobrepondo-se às vozes que se confundem na sala. A mistura entre a terra da mãe e o Senegal do pai fazem dela a mais escura da sala, como já os colegas tinham denunciado, mas também a mais faladora. “Deixa-me falar a mim agora”, interrompe Adriano, que joga taco a taco com Jacinta na questão da cor da pele. A educadora dá-nos a indicação de que os pais são angolanos, mas à pergunta “de onde és”, Adriano solta um simples “sou do Benfica”. A partir daí, seguem-se alguns minutos de disputa por cores futebolísticas mais acesa do que alguma vez houve com as cores das suas peles.
Beatriz Gusmão é professora no Jardim–de-Infância dos Anjos há dez anos e são poucas as vezes que sentiu algum tipo de discriminação entre as crianças. É, aliás, fora das paredes do edifício que as diferenças são mais notórias. “Volta e meia vamos dar um passeio e um deles aponta para quem passa e comenta: ‘Este senhor é castanho como o meu pai.’” A educadora admite ter já ouvido uma ou outra vez um “não brinco contigo porque és preta”, mas foram casos pontuais e resolvidos no momento, explica. Para evitar divisões, são as educadoras que organizam os grupos, procurando assim impedir que não se associem sempre aos mesmos colegas. Além disso, a hora da história costuma ter sempre uma mensagem subliminar e é promovida a aprendizagem sobre as diferentes línguas e culturas.
Rodrigo, o mais pequeno da sala, arregala os olhos pestanudos enquanto se empoleira numa cadeira para chegar ao mais recente projecto que enche uma das paredes da sala. “Fui eu que fiz esta bandeira”, diz, apontando para um mapa--mundo feito de massinhas onde os países estão identificados pelas respectivas cores. Rodrigo, como quase todos os outros colegas, é filho de uma mistura que se nota no cabelo curto escondendo uns caracóis em ascensão e o tom moreno da pele. “A minha mãe é castanha e o meu pai é branco”, resume antes de concluir: “E eu sou o Rodrigo.”
Cantina multicultural Um papel posto logo à entrada não deixa dúvidas quanto ao cheiro que chega da cozinha. O almoço vai ser simples: bife de frango com arroz e fruta para sobremesa. “Hoje é um bom dia”, atira Iolanda, a cabo-verdiana que, em conjunto com a brasileira Luciene, toma conta de uma cozinha que mais parece um caldeirão de culturas.
Os dias em que a ementa tem carne de porco ou de vaca são de algumas dores de cabeça para as cozinheiras. O mesmo para os pratos em que o acompanhamento é massa ou quando o lanche é feito com leite e pão. Aos cada vez mais comuns celíacos e intolerantes à lactose juntam–se as condicionantes de quem obedece a regras de outras culturas e religiões. “A sala vermelha é a pior”, conta Iolanda, apontando para a cábula afixada na parede, que a ajuda a não cometer erros.
Nesta turma há uma criança intolerante ao glúten, outra que não bebe leite com lactose, um muçulmano que não come porco e dois indianos, um que não come porco e outro que não come nem vaca nem porco. “Não é difícil”, garante a cozinheira, “é uma questão de hábito.” E, de facto, a ementa é preparada com antecipação para que não haja falhas. “Mas já aconteceram?” A directora da escola, Joana Marques Vidal, recorda apenas um deslize, “cometido há muitos anos”, garante. “Tinha cá uns miúdos ismaelitas que não comiam carne de porco. O problema foi que eu me esqueci que salsichas são feitas de porco”, lembra, entre risos.
Fundadora de uma escola com mais de 40 anos, Joana garante que não há nada mais fácil do que lidar com miúdos. “Para estas crianças não há cores”, garante. “Já viram como tudo seria melhor se fôssemos como eles?”