Maria Moisés


E temos o juiz Teotónio, que discorre sobre livros e autores que nunca leu, embora não se coíba de proclamar e de sentenciar a eito, sobretudo se o tema for a corrupção dos costumes


É frequente citar-se a actualidade de Eça de Queirós e encontrar hoje personagens suas e cenas que, mudando os figurinos e os meios de transporte, lembram as dos seus romances e novelas, mais coisa menos coisa. Também acontece encontrar citados, embora menos, Oliveira Martins e Antero em bocas que apreciam o desencanto do primeiro e que acham que está tudo explicado na apreciação que o segundo fez das causas da decadência peninsular, responsabilizando uma troika que, sob várias vestes, se perpetua (Índias e Brasis, Estado e Igreja). Oliveira Martins, aliás, é bem citado em qualquer época na qual rotativismo partidário, plutocracia, elites embasbacadas e sornas e/ou protectorado estrangeiro sejam o prato do dia. Por mim, sem desdenhar nenhum deles, gosto muito da actualidade de Camilo, que é menos citada, talvez porque esteja camuflada sob camadas de um português tão difícil quanto saboroso e de lances dramáticos em que famílias se detestam e donzelas e moços sofrem de tísica e de amor. 

 “Maria Moisés” é um bom exemplo, embora possa não parecer, se ficarmos pelo drama moral da enjeitada com inesperado final feliz. Talvez alguns leitores prefiram em Camilo a actualidade de novelas carregadas de brasileiros de torna-viagem ou o mais óbvio retrato do anjo Calisto Elói, que se perde nos abismos de Lisboa. Mas “Maria Moisés”, embora passado em 1813 e 1850, está cheio de actualidade, não nos amores e na tísica (coisas de que já se morre pouco por cá), mas em lances que hoje se repetem, mais coisa menos coisa, como se – como pensaria o detective Mário Conde, de outras literaturas – a realidade sofresse de obstinação crónica. Temos, por exemplo, a incompreensão da sociedade em relação ao modo como a protagonista, a Maria Moisés do título, usa o que herdou gastando tudo para acudir aos necessitados. Não compreende a sociedade por que razão não fica ela apenas pela caridade e pela esmola (belas e reconfortantes para a alma de quem dá, mas de sã prudência para a sua bolsa) e choca-se com a sua entrega aos verdadeiros amparo e ajuda. E temos também, como não podia deixar de ser em Camilo, a alusão a cabralistas, patuleias, saldanhistas e outros partidos, todos a precisar e a pedir dinheiro e enredados em golpes e intrigas pelos Chiados do país, enquanto o bom povo, nas suas leiras e serras, suspira pelo regresso de um qualquer Senhor D. Miguel, pai severo e autoritário mas extremoso e salvador. E temos – do que gosto particularmente – o juiz Teotónio, que para uma plateia constituída pelas suas manas Marias (Filipa e Tibúrcia) e pelo fiel cónego (há sempre um cónego), discorre sobre livros e autores que nunca leu, embora não se coíba de proclamar e de sentenciar a eito, sobretudo se o tema for a corrupção dos costumes – tema, aliás, em que é versado, embora em vícios privados, já que no mais abundam as públicas virtudes, apesar das desconfianças das manas. Et cetera, pois “Maria Moisés” em particular e Camilo em geral são um mar de obstinada realidade. 

Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado

Maria Moisés


E temos o juiz Teotónio, que discorre sobre livros e autores que nunca leu, embora não se coíba de proclamar e de sentenciar a eito, sobretudo se o tema for a corrupção dos costumes


É frequente citar-se a actualidade de Eça de Queirós e encontrar hoje personagens suas e cenas que, mudando os figurinos e os meios de transporte, lembram as dos seus romances e novelas, mais coisa menos coisa. Também acontece encontrar citados, embora menos, Oliveira Martins e Antero em bocas que apreciam o desencanto do primeiro e que acham que está tudo explicado na apreciação que o segundo fez das causas da decadência peninsular, responsabilizando uma troika que, sob várias vestes, se perpetua (Índias e Brasis, Estado e Igreja). Oliveira Martins, aliás, é bem citado em qualquer época na qual rotativismo partidário, plutocracia, elites embasbacadas e sornas e/ou protectorado estrangeiro sejam o prato do dia. Por mim, sem desdenhar nenhum deles, gosto muito da actualidade de Camilo, que é menos citada, talvez porque esteja camuflada sob camadas de um português tão difícil quanto saboroso e de lances dramáticos em que famílias se detestam e donzelas e moços sofrem de tísica e de amor. 

 “Maria Moisés” é um bom exemplo, embora possa não parecer, se ficarmos pelo drama moral da enjeitada com inesperado final feliz. Talvez alguns leitores prefiram em Camilo a actualidade de novelas carregadas de brasileiros de torna-viagem ou o mais óbvio retrato do anjo Calisto Elói, que se perde nos abismos de Lisboa. Mas “Maria Moisés”, embora passado em 1813 e 1850, está cheio de actualidade, não nos amores e na tísica (coisas de que já se morre pouco por cá), mas em lances que hoje se repetem, mais coisa menos coisa, como se – como pensaria o detective Mário Conde, de outras literaturas – a realidade sofresse de obstinação crónica. Temos, por exemplo, a incompreensão da sociedade em relação ao modo como a protagonista, a Maria Moisés do título, usa o que herdou gastando tudo para acudir aos necessitados. Não compreende a sociedade por que razão não fica ela apenas pela caridade e pela esmola (belas e reconfortantes para a alma de quem dá, mas de sã prudência para a sua bolsa) e choca-se com a sua entrega aos verdadeiros amparo e ajuda. E temos também, como não podia deixar de ser em Camilo, a alusão a cabralistas, patuleias, saldanhistas e outros partidos, todos a precisar e a pedir dinheiro e enredados em golpes e intrigas pelos Chiados do país, enquanto o bom povo, nas suas leiras e serras, suspira pelo regresso de um qualquer Senhor D. Miguel, pai severo e autoritário mas extremoso e salvador. E temos – do que gosto particularmente – o juiz Teotónio, que para uma plateia constituída pelas suas manas Marias (Filipa e Tibúrcia) e pelo fiel cónego (há sempre um cónego), discorre sobre livros e autores que nunca leu, embora não se coíba de proclamar e de sentenciar a eito, sobretudo se o tema for a corrupção dos costumes – tema, aliás, em que é versado, embora em vícios privados, já que no mais abundam as públicas virtudes, apesar das desconfianças das manas. Et cetera, pois “Maria Moisés” em particular e Camilo em geral são um mar de obstinada realidade. 

Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado