Moram juntos, trabalham juntos, só não dormem de conchinha. Até os próprios cães se cruzam entre eles, mais por força da natureza que por intenção dos donos, e, quem sabe, qualquer dia surge a raça do Joá (localidade onde moram), vira-latas apurados e capazes de se aventurar sozinhos nas ruas do Rio de Janeiro só para irem dar um mergulho à praia de São Conrado.
“O que rege a energia encarregada pela arte dos encontros? Será o maior monólito oceânico do mundo? A tranquilidade da natureza? Ou a definição de espaço e liberdade? É, privilegiadamente, aos pés da Pedra da Gávea que a família toma forma, ganha vida e, organicamente, faz valer o nome que a define: colectivo”, lê-se à entrada da casa ocupada por dez artistas cariocas.
Tudo está inacabado, a começar pela propriedade em si, de betão armado e sem portas ou janelas, representando, por coincidência ou obra do destino, o espírito da malta que por lá anda. Consequência da falência do proprietário, o estado da casa nunca foi para eles grande problema. Afinal todas as coisas representam possibilidades infinitas, não é verdade, Peu Mello? “Ah ah! Sim, verdade, tanto que, quando eu morava com a minha mãe tive de sair do apartamento dela antes do pretendido porque eu carregava lixo da rua, lotava o meu quarto e ela ficava louca, porque queria ajeitar a casa e eu tocava o terror. Mesmo no prédio tinha quem reclamasse… Enfim, eu me dava bem com todo o mundo mas também perturbava, sou meio espaçoso, por isso é que eu acho que vim parar aqui”, explica o artista plástico de 33 anos e que com mais quatro “parceiros” estará em Lisboa, mais concretamente no Pavilhão 31 do Júlio de Matos, para a exposição “Descolado”, de 29 de Outubro a 15 de Dezembro.
Além disso, e por isso é que estão aqui, todos surfam e fazem grande parte das pranchas que usam. Na gíria brasileira, o adjectivo que dá nome à mostra usa-se para descrever uma pessoa, geralmente jovem, ligada às artes e a ideias que destoam do gosto popular mais óbvio. Descolados atraem descolados e foi com esta galera que Dane Reynolds e Craig Andreson, essas duas estrelinhas do free-surf mundial, andaram quando foram ao Rio de Janeiro no início de Abril. Até Shiba, a cadela de Joana, mulher de Peu, e filha do Fosco (na foto em cima), teve direito a selfies com o primeiro media darling, que não esconde o amor pelos animais no seu Instagram.
Ao princípio, em 2014, a proposta do projecto era, literalmente, deslocar um grupo de artistas emergentes do seu ateliê colectivo habitual para uma galeria de arte convencional. Assim lhes foi lançado o desafio de saírem da sua zona de conforto, no mato, e criarem obras para um espaço estéril e comercial, completamente inserido no mercado da arte contemporânea. Em 2015 decidiram expandir o conceito, amplificando a proposta de deslocamento. Em Lisboa esta turma terá um contacto directo com os artistas residentes e participantes da iniciativa de reabilitação através da criação, liderada por Sandro Resende, que há mais de uma década dá aulas de artes plásticas aos utentes do hospital psiquiátrico.
Protagonista da série “Custo Zero”, do Canal Off (da gigante Globo e centrado em desportos radicais), Rafael Uzai, de 30 anos, é outro que marcará presença com a sua arte “minimalista e bem simples”. “A gente troca muita coisa, cada um está introduzindo uma linha diferente de raciocínio, cada um procurando contacto novo para expandir os horizontes do grupo, a cada hora, alguma coisa… Também viajamos juntos, surfamos juntos, é uma troca que alimenta o nosso dia-a-dia, é um estilo de vida, não só profissionalmente como de coisas normais que não o trabalho e que envolvem amizade mesmo”, conta Rafinha, talvez o mais metódico e organizado do colectivo. Foi ele o terceiro a chegar à casa, onde na entrada existe uma espécie de galeria com o nome do cão de Peu, Fosco, o veterano e macho alfa do Joá, que sempre que pode arma confusão com Cush, de Breno Moreira, que não virá a Lisboa. Este último, cineasta precoce e que nos lembra Cazuza, já dirigiu campanhas publicitárias para marcas como a Louis Vuitton, a Levi’s e a Nike e venceu, no início deste ano, o Audience Award no ClujShorts International Short Film Festival, que decorreu na Roménia. Todos eles se encheram de orgulho pelo “caçula” da casa.
É com ironia que Alexandre Baltazar explora os detalhes da vida pós-moderna através da ilustração, da pintura com tinta-da-china e das colagens feitas a partir de imagens retiradas de revistas antigas. Geralmente são quadros a preto-e-branco que remetem para movimentos contraculturais através dos seus traços imperfeitos. “Eu tenho essa coisa do retrato com umas frases narrativas ficcionais, gosto de contar umas histórias que no inconsciente podem ter que ver com algum momento da minha vida”, explica. O seu trabalho procura uma estética não fabricada, através de um visual despretensioso, que passa pela cultura punk e pelo antirracionalismo dadaísta. Ao utilizar inúmeras referências da indústria cultural, Balta, de 26 anos, questiona os valores estabelecidos com humor, dando corpo tanto a personagens familiares (Bob Dylan, Jimi Hendrix, Iggy Pop) como estranhos e a cenas igualmente triviais e incómodas. As experiências com cor são poucas ainda e, segundo ele, talvez por ser “bastante daltónico”. “Acho que qualquer cor me vai causar confusão.”
Se, com o seu ar de lenhador das montanhas, Olav Lorentzen, meio brasileiro meio norueguês, meio em Londres meio no Rio, diz estar “interessado em fazer arte que não se pareça com arte”, desafiando as pessoas a terem uma interacção mais pessoal com as suas obras, Marcelo Macedo vagueia por diferentes métodos criativos, das tintas e das canetas com que realiza sketchs e desenhos ao spray com que explora o universo da street art e passando pela madeira. “O meu trabalho é muito sobre o quotidiano, sobre coisas que todo o mundo acha que são de um jeito mas que de repente podem ser de outro ”, diz o primeiro, de 30 anos e formado em Administração. O segundo por agora não diz nada porque de todos foi o único com quem não falámos. Desencontros.
Foi uma trabalheira danada para deixarem os cães, seguros de que não lhes faltaria nada, nem passeios na praia, e virem cá, carregados de pranchas e arte. Por isso, e quando não houver nada mais prioritário na agenda, vá ao Júlio de Matos para lhes subir o moral. É a sua estreia deste lado do oceano e, no que depender deles, bichos também estão convidados. Vão ficar pouco tempo, já que de 19 a 22 Novembro recebem na sua casa – sim, aquela sem portas e janelas – a 4.a edição do Mimpi, Festival Internacional de Filmes de Surf e Skate. Auuuuuuu!