Entrevista Jamie Brisick. “É triste ver os amigos de longa data da Westerly gozarem com ela”

Entrevista Jamie Brisick. “É triste ver os amigos de longa data da Westerly gozarem com ela”


Primeiro havia o Peter Drouyn que ficou para a história como surfista inovador e inclinado aos dramas. 


Em 1977 foi o número 6 no ranking mundial e, oito anos mais tarde, decidiu levar o surf até à China. Responsável pela invenção das baterias man-on-man, o australiano da Gold Coast foi considerado um dos mais estilosos da sua época, até que um dia se foi, “para o céu”.

 

Pelo menos é assim que Westerly Windina, depois de ter feito, em 2013, uma operação de mudança de sexo, conta a história a Jamie Brisick. O i falou com o jornalista norte-americano responsável pela biografia recém-publicada do primeiro transexual a assumir-se em público no desporto.

 

Como descobriste a história de Westerly e porque decidiste contá-la?

Em 2008 a Westerly apareceu na televisão nacional australiana a anunciar que o Peter (o seu ex-self) se tinha ido embora e no seu lugar existia a Westerly. Os meios de comunicação não a levaram a sério. Era mais uma piada que um caso sério de interesse humano. Eu queria chegar à verdadeira história, a sua história, e por isso em 2009 fui à Austrália para escrever um perfil dela. E ela era fascinante. Tornámo-nos amigos, a história agarrou-me e decidi contá-la num livro e num documentário, porque através dela aprendi mais sobre mim mesmo.

 

O facto de ela ser um ex-surfista profissional teve alguma influência na tua decisão?

Sim, sem dúvida. Nunca alcancei os feitos que o Peter Drouyn alcançou, mas também fui surfista profissional – identifiquei-me com o Peter/a Westerly. Conheço o mundo de onde ele/ela veio.

 

O que te veio à cabeça quando a conheceste? Ela foi aberta durante o processo?

A Westerly foi incrivelmente aberta comigo, não tinha medo de ser vulnerável. Quando olhava para ela era como se toda a pele dela tivesse sido removida e eu estivesse a ver as suas vísceras, o seu coração frágil a bater. Também tive a sensação de que ela era um espelho de Carnaval, reflectindo o que é ser um ser humano embora de forma exagerada.

 

O que mais te surpreendeu enquanto investigavas esta história?

As surpresas foram-se tornando menos surpreendentes à medida que fui mergulhando na história, mas inicialmente fiquei intrigado com a forma como muitas vezes a Westerly se contradizia. Claro que todos nos contradizemos – contradizermo-nos é tão manifestamente humano… Também fiquei surpreendido com a forma como ela foi maltratada – ninguém a levou a sério, fizeram piadas sobre ela. A comunidade do surf foi terrivelmente intolerante e a Westerly respondeu com raiva e adoptou uma postura defensiva. Era como se os quisesse chocar ainda mais, o que eu aprecio e respeito. É triste ver os seus colegas de longa data gozarem com ela.

 

Achas essa atitude é apenas um reflexo da comunidade do surf?

De uma forma geral, acho a indústria do surf muito desonesta. Dado que o surf tem lugar no oceano e o acto em si traz ao de cima as nossas essências mais puras, honestas e sinceras, parece-me estranho a quantidade de fumo e espelhos que existe na indústria. Talvez seja parte do complexo de inferioridade do surf, do seu desejo de competir com o golfe e o ténis, e com isto a ideia de que tem de continuar a andar abotoado, de forma profissional.

Tenho saudades dos tempos em que os surfistas eram selvagens, iconoclastas e rebeldes – quando a individualidade era defendida.

 

Em tua opinião, o que fez o surf evoluir nessa direcção desonesta e conservadora?

Faço-me a mesma pergunta. Parece ir contra a essência do surf. Acho que é a indústria, a comercialização. Acho que, porque o surf é um desporto que desencadeia obsessões, muitos dos seus praticantes mais dedicados acabam por ser contaminados por ele noutras vertentes das suas vidas. Muitos dos melhores picos de surf do mundo estão localizados em províncias, e não em centros urbanos.

E são as grandes cidades que tendem a produzir mais abertura de espírito.

 

Num cenário hipotético, o que aconteceria a um surfista do circuito mundial cheio de patrocinadores que

explicitamente decidisse assumir a homossexualidade no auge da carreira?

Que pergunta fabulosa! O meu palpite é que seria ostracizado pelos pares (ou seja, a elite profissional), que por sua vez influenciariam os fãs e que por sua vez influenciariam os patrocinadores do surfista homossexual. Com sorte, os media interviriam e destacariam a sua bravura. É difícil dizer onde tudo isto iria terminar, mas o optimista em mim gosta de pensar que se tornaria um herói, incentivando outras pessoas a viverem com mais honestidade.

Parece que hoje em dia há esta tendência no surf profissional, na retórica World Surfing League (WSL), na comercialização da indústria, de retratar os surfistas masculinos como “guerreiros”, “exemplos supercorajosos da espécie”, e as miúdas como “boazonas”. Como é que isso afecta os talentos e as mentes dos que estão envolvidos neste discurso?

Há um sexismo inerente à cultura do surf. Está lá desde que me lembro, e cria pensamentos e atitudes-padrão, tornando mais difícil as mentes originais prevalecerem.

Cria um “clube dos rapazes” e perpetua o pensamento tacanho. A minha relação de amor/ódio com o mundo do surf é resultado disto. Senti-me muitas vezes decepcionado com os meus amigos surfistas.

 

Considerando a importância de Peter (e de Westerly) para o desporto e as coisas que ele trouxe ao surf, como é que os media tradicionais do surf reagiram ao teu livro? E a secção de comentários nos sites?

A maior parte dos meios de comunicação do surf foram solidários e abraçaram a história, que é interessante e válida. No entanto, a revista “Surfer” fez uma peça que gerou todo o tipo de mensagens de ódio: “Isto não tem nada que estar numa revista de surf”, “Vou cancelar a minha assinatura”, etc. Foi muito desanimador para mim.

Fiquei espantado quando descobri a pobreza de espírito que existe num mundo de fluidez e mudança de formas.

 

Se tivesses de escolher as personagens mais importantes da história do surf consideradas perturbadoras por os seus valores e normas de comportamento diferirem substancialmente do mainstream do surf no momento em que surgiram, quem escolhias? Além de Westerly, claro…

Gosto muito do Miki Dora, por agitar as merdas e apresentar um contraponto, por se rebelar em nome da rebelião. Também o Craig Stecyk, assim como o Dora, se está nas tintas para o status quo. O Tom Blake é um visionário – o homem do mar por excelência e uma grande inspiração na minha vida. O Kelly Slater, que constantemente nos ilumina, dentro e fora de água.

 

Thomas Jefferson disse um dia que “uma rebelião de quando em quando é boa”. Quando as forças de oposição atingem a massa crítica, as contraculturas podem provocar mudanças de comportamento dramáticas, e os tempos em que isso acontece são em geral muito interessantes. Gostaria de ver o surf atravessar uma mudança significativa num futuro próximo? Em que direcção?

Adoro a citação do Thomas Jefferson! Concordo plenamente. Venho do mundo do punk rock, que me ensinou a questionar tudo. Gostaria de o ver tornar-se mais diversificado. Gostaria de o ver chegar a uma área socioeconómica mais vasta. E gostaria de ver mais curiosidade intelectual.