Chas Smith

Chas Smith


“As drogas fazem parte do ADN do surf”


Em 2006, enquanto cobria o conflito entre Israel e a Palestina para a já extinta Current TV, Chas Smith acabou refém do Hezbollah. Depois disso, e após incursões em países como a Somália ou o Líbano, o jornalista americano, com textos escritos para publicações como a “Esquire”, a “GQ”, a “New York Times Magazine”, a “Blackbook”, a “Playboy” e a “Vice”, decidiu ir para o Havai, onde todos os anos se encerra o circuito mundial. Surfista desde os dez anos e a precisar do que achava que seriam umas férias das reportagens de verdade, Chas lançou em 2013 o livro “Welcome to Paradise, now Go to Hell: A True Story of Violence, Corruption, and the Soul of Surfing”, deixando assim um cunho muito pessoal na forma de abordar o desporto. Numa crítica positiva, a conceituada “Kirkus Reviews” descreveu o autor de 39 anos como “o príncipe-palhaço da prosa trash”, resumindo o livro como “uma investigação embriagada e muitas vezes engraçada sobre um canto pouco conhecido da América”. Conhecido pelo estilo hiperirónico e provocador, que inclusive já fez Mick Fanning perder a estribeiras, Smith, que abusa do jornalismo gonzo aplicado ao surf, conversou com o i sobre a máfia havaiana liderada por Fast Eddie, o desentendimento com o actual líder do ranking, o estilo ou a falta dele no desporto, entre muitas outras coisas.

Quando o teu livro foi publicado, há dois anos, estavas convencido que mais cedo ou mais tarde ias levar uma chapada. Estamos em 2015. Recebeste críticas fisicamente violentas?

Sabes bem que não. Tentei ser completamente honesto ao escrever. Não sou um especialista na cultura e na tradição havaianas, nem na sua herança para o surf. Era, e sou, um outsider. E muito. A minha perspectiva vem de pertencer a esta cultura do surf, que apareceu na Califórnia e é forçada a fazer parte de uma cultura mais ampla, antiga, feroz e apaixonada do outro lado do mar. O livro procurou contextualizar o North Shore de Oahu para outros outsiders. Descrever o que se sente lá. E penso que a maioria dos moradores entendeu.

Altamente controverso, o livro rompe barreiras do mundo do surf e apaga o retrato romântico projectado pela indústria e pela comunidade. Como reagiram as pessoas envolvidas no texto?

A reacção foi positiva, e por isso chocante, ou pelo menos chocante para mim. Mas, mais uma vez, fui o mais honesto possível. Queria despertar um sentimento. A sensação de observar aquelas ondas monstruosas e destrutivas. A sensação de andar sozinho debaixo de palmeiras à noite. O medo, a adrenalina, a paixão. Acho que a maior parte das pessoas da indústria/comunidade experimentaram esses sentimentos, e foi talvez por isso que o livro funcionou.

Como assumes com frequência, os teus “momentos de clareza” são em geral irrigados a vodka ou tequila. Como é que essas bebidas funcionam no teu processo criativo? Recomenda-las aos jovens jornalistas?

Não! Quero dizer, sim, mas não para lubrificar a criatividade. Às vezes, quando estou realmente bloqueado, tomo uma bebida para me ajudar a reflectir e a chegar à tal clareza, mas o pior trabalho que já fiz foi “trabalho bêbado”. Usa as bebidas quando precisas que a tua mente vagueie. Não quando precisas dela para criar.

Fast Eddie leu o livro? E pediu para dar uma olhadela enquanto estavas a escrevê-lo?

Sim, leu. Leu um rascunho muito, muito, muito preliminar que alguém “acidentalmente” lhe deu e leu a cópia final. Acho que entendeu o que eu estava a tentar fazer. Percebeu que o meu objectivo era descrever o que se sente naquele mundo louco e deu-me espaço para isso. Tivemos inúmeras conversas antes de começar a escrever, durante e depois de terminar. Ele é esperto e entendeu.

Podes descrever Fast Eddie para quem nunca ouviu falar dele? E explicar a que ponto é intenso e tribal o seu poder e a sua influência no final de cada época do circuito mundial?

O Fast Eddie é uma personagem que nem mesmo o maior sonhador poderia evocar. É um homem pitbull. Vem de Filadélfia, mudou-se para o North Shore muito jovem e encontrou um lugar onde se sentia em casa. Na década de 1970 fundou um grupo chamado Da Hui, que basicamente devolveu a soberania das ondas aos havaianos, forçando australianos e norte-americanos do continente a terem respeito. É uma força brutal no North Shore, temido e respeitado na mesma medida.

Um dos assuntos que mais abordas no livro é a relação estreita entre a indústria do surf e as drogas. Como funciona esta ligação?

As drogas fazem parte do ADN do surf, que cresceu durante os anos 60 e 70. Na altura era um desporto abandonado, uma coisa marginal e de pouca importância. Mais tarde, quando as empresas de surf começaram a ser cotadas em bolsa, na década de 1990, penso que sentiram necessidade de apagar essas ligações e isso irrita-me. Não defendo o uso de drogas, mas apagar a origens do surf também não é a resposta. Algumas das nossas maiores histórias são aventuras abastecidas com drogas. E algumas das nossas maiores histórias futuras também serão. Deixemos a igreja ser igreja e o surf surf.

És conhecido pelo teu estilo hiperirónico e provocador. E também pela tua obsessão com marcas, penteados, cortes adequados de jeans e qualquer outra coisa que tenha a ver com moda e boa aparência. Surfistas e leitores consideram-te narcisista e frívolo, queixam-se de que gozas com toda a gente e de que gostas de escrever coisas más sobre todos. Este é o Chas escritor (uma personagem), ou também o pai, o marido, o amigo, o vizinho?

Engraçado… Eu achava que era o Chas escritor, mas vim a aperceber-me de que é apenas o Chas. O que escrevo é provavelmente mais raso do que eu sou, mas não muito mais. Como escrevo é provavelmente mais provocador, mas não muito mais. Sou isso tudo! Tento não ser tão negativo como dantes. O meu colaborador no site BeachGrit e grande amigo Derek Rielly disse-me uma vez que é fácil encontrar o lado mau e mais difícil encontrar o bom. Um desafio! Tento fazer isso com mais frequência, mas às vezes a verdade tem de ser dita!

E quem ou o que te irrita? Quem consegue desencadear em ti reacções semelhantes às que provocas nas outras pessoas?

Oooh… Odeio uma reacção culturalmente automática adequada às coisas. Odeio as caixas pequenas onde as pessoas enfiam o mundo. É divertido ver as coisas de novos ângulos, não? Ódio é uma palavra forte, mas realmente odeio isso. Além disso odeio as pessoas que azucrinam os fracos. Filhos da puta. E odeio as calças de ganga do designer John Varvatos.

Já escreveste sobre conflitos internacionais e outros assuntos bem mais complexos, ricos e diversificados que o surf. Porque continuas a visitar este pequeno mundo?

Não consigo afastar-me. E isso dantes irritava-me. Tentava. Pensava “não tenho mais nada a dizer…”, mas depois aparecia algum assunto que me sugava de volta. Adoro surfar. Faz parte de quem sou e hoje em dia sinto-me confortável por saber que os dedos dos meus pés vão sempre aqui.

David Carson, surfista profissional do final dos anos 70 e um dos mais revolucionários designers gráficos na década de 90, disse-me numa entrevista que só percebeu a que ponto os surfistas são conservadores quando trabalhou para a “Surfer Magazine”. Concordas com ele? A comunidade do surf foi tacanha contigo?

Filho da puta, sim. O surf é a cultura conservadora mais limitada da Terra (fora a da Arábia Saudita). Mas ao mesmo tempo têm-me dado uma liberdade louca! Suponho que o surf como um todo é conservador, mas também fazem parte dele algumas das melhores pessoas da Terra… e para minha sorte deixam-me andar com elas. O Tony Perez, da “Surfing Magazine”, o Taylor Paul, o Sam McIntosh, da “Stab”, o Derek Rielly, claro, o Scott Hulet, da “Surfers Journal”, o Daz, da Quiksilver… Poderia continuar e continuar. O surf é conservador, mas há muitos surfistas simplesmente fabulosos.

Se a indústria de surf fosse um homem, que tipo de gajo seria? Um daqueles que se levam muito a sério porque estão a tentar parecer alguém que não são?

Sim. E sem a completa noção do que realmente está a acontecer com os putos. Teria uns 45 anos. E uma prancha de 8 pés. E acharia que as suas pauladas eram incríveis.

Cori Schumacher (tricampeã do mundo de longboard e lésbica assumida) argumenta que há um silêncio institucionalizado e opressivo (para proteger os detentores do poder) na comunidade do surf. Mas só consegues sentir isso quando estás integrado nela, os de fora não se apercebem dessa força. A maioria só vê aquele cliché dos viajantes com cabelos queimados pelo sol, pele bronzeada, corpos invejáveis, criaturas com uma vida de sonho e que aparentam ser completamente livres… Concordas com ela? Com base na tua experiência, podes explicar aos nossos leitores como este processo de exclusão funciona?

Mais uma vez, aqui está a particularidade da minha situação, porque, basicamente, tenho sido sempre autorizado a dizer toda a merda que quero… dentro de limites razoáveis. Penso que o silêncio está maioritariamente relacionado com as marcas que anunciam nas revistas e as histórias que preferem não deixar vir cá para fora. Há muitas histórias desse tipo. Eu já contei algumas e ouvi mais ainda, mas algumas, muito francamente, são pouco interessantes. Com o poder das revistas a diminuir, essas histórias são mais fáceis de contar que nunca. Para mim trata-se de uma questão de valor. Existe algum valor real em contá-las? Suponho que neste sentido é como na política. Escolhe as tuas batalhas, baby. Mas sim, concordo totalmente com a Cori. Institucionalizado e opressivo. Mas quase sempre há uma maneira de o contornar.

Como pode um desporto tão fluido na água, tão aventureiro, ser tão conservador, ou até reaccionário, em terra?

Óptima pergunta. E que se calhar tem uma resposta simples. Acho que tudo foi para o caraças quando as grandes marcas de surf começaram a ser cotadas em bolsa. O seu dever perante os accionistas fez que mudassem o que poderiam ser e isso contaminou toda a indústria, tornou-a mais dura. Agora a World Surfing League (WSL) está a tentar transformar o surf na National Football League (NFL), o que representa uma rigidez ainda maior.

Porque é que a objectividade, a clareza e a criatividade são tão difíceis na maior parte das revistas, dos sites e da televisão ligada ao surf? Estarão perto de mais dos seus assuntos? Ou serão altamente controlados pela indústria e dependentes dela?

Sim! As marcas pagam tudo e é raro uma história subversiva não estar directamente vinculada a uma marca. Em geral os surfistas também não confiam em pessoas de fora e por isso os jornalistas do “The New York Times”, ou de outro lado qualquer, não têm acesso às informações. Este é uns dos elementos que tornam o surf incrível. A cena toda do “somos uma tribo” torna-o desafiador. Se fizeres merda, chutam-te dali fora.

Mick Fanning é o líder do ranking. E estás a falar para um jornal diário, e não para uma revista de surf. Podes contar aos nossos leitores o que aconteceu no episódio do “fucking jew” (judeu de merda) e depois?

Ah! Sim. Fui convidado para a festa depois de ele ganhar, acho, o segundo título mundial. Um jornalista australiano insistiu em apresentar-nos. O Mick estava muito irritado porque eu tinha escrito que ele se vestia mal e surfava de forma chata e desatou aos gritos comigo, e lá pelo meio chamou-me “fucking jew”. Escrevi sobre o que aconteceu no meio de uma reportagem mais ampla sobre o Inverno no North Shore para a revista “Stab”. Os meios de comunicação australianos pegaram no texto e deu tudo em doido. O Mick pediu desculpa mas tentou atirar com a culpa para cima de mim, disse qualquer coisa sobre como achava que era o tipo de linguagem que eu usei, ou uma coisa assim, e explicou que tinha tentado ser irónico. Achei que era uma idiotice dizer uma coisa daquelas e que o relações públicas dele na altura devia ter sido sumariamente despedido! Mas aos poucos a raiva desapareceu e agora, suponho eu, resta só uma pequena tensão um bocado estranha. Gostava muito de me sentar com ele um dia… até podia dar-me um soco se quisesse!

“O estilo é a resposta para tudo”, escreveu um dia Charles Bukowski. Tu criticas o estilo da maioria dos surfistas e até Kelly Slater hesitou antes de te dar uma entrevista porque “ias fazer troça” das calças dele. Na tua opinião e de um modo geral o que está errado com o estilo dos surfistas?

Os surfistas são criaturas belíssimas… passam imenso tempo na água, ao sol, a remar, etc. Magnificamente esculpidos! Mas estão-se simplesmente a cagar. De uma forma geral, não perdem tempo a estudar o que lhes fica bem, pensam que isso é uma perda de tempo, acho eu. E por isso vestem qualquer coisa que tenham à mão, e isso nota-se.

E isso (a roupa) é parte da razão pela qual a indústria do surf está em crise? Porque não foi capaz de se adaptar e evoluir rumo a uma clientela grande e moderna?

Acho que indústria do surf se perdeu no seu caminho. Tentou ser fast fashion, surf fashion, algo elegante e algo barato tudo de uma vez. Falhou em todas estas vertentes. Penso que todas deveriam voltar ao desenho de pranchas e fazer coisas incrivelmente funcionais. Coisas que se relacionem directamente com o oceano. A indústria do surf tem uma história para contar que ninguém mais tem. E as marcas precisam de a contar. Com melhores cortes e tecidos.

Quem é o surfista WCT mais estiloso e porquê?

Do WCT? Hmmmmmmmmmmm… Vou ter de escolher o CJ Hobgood. Estilo, em última análise, é confiança e ninguém está mais confiante numa t-shirt “fish gut” manchada e um par de calções horríveis que este homem.

2015 começou na Gold Coast australiana com um sonoro “fuck” de Gabriel Medina em directo e surfistas a surfar sobre as pedras. Depois tivemos um ataque de tubarão na África do Sul, o anúncio súbito e estranho da reforma de Freddy P. em Lowers, na Califórnia, e até agora algumas ondas boas. Com isto no menu, quais foram para ti os momentos mais emocionantes da temporada até agora?

O ataque de tubarão ao Mick, de longe. Como foi incrível ninguém se ter magoado e que história divertida para o resto do mundo mastigar, não é? A reacção do Julian foi incrível. O aéreo de 4,17 do Kelly. Acho que qualquer coisa que apareça várias vezes no meu feed do Instagram ou no Twitter é divertido. Qualquer coisa que faça as pessoas dar à língua. Na tua opinião, quem vai ganhar o título este ano? O meu melhor amigo, Mick Fanning!