Este novo romance de JoãoPaulo Cuenca é tão verdadeiro que parece mentira. Os detalhes batem todos certo, mas ao mesmo tempo histórias assim só as há se alguém as inventar. Daí que façamos a pergunta obrigatória antes de todas as outras: João Paulo, esta história é verdadeira? Ou fazer esta pergunta é sinal de que tudo está a correr como planeou (em brasileiro escreve-se “planejou”)? “A história é verdadeira, assim como os documentos” – sim, que este livro inclui provas. “A seguir, tudo o que não é mentira é verdade.” E com esta primeira citação está garantido o encanto de “Descobri Que Estava Morto”.
O título é este porque é assim que começa a história: Cuenca (ele próprio, o autor é o herói do conto e fica-lhe bem o protagonismo) é informado de que está morto e há quem chegue a mostrar-lhe o papel carimbado a provar o óbito. A partir daí, a missão deste perdido na vida é saber afinal quem morreu no lugar dele. Ou será que há algo que de facto foi e já não volta? Será a escrita? O quotidiano como sempre o viveu? O Rio de Janeiro? É um pouco de tudo e assim chegamos à página 215 sem subir à supefície para respirar. Pelo caminho ficou um encontro fabuloso com a verdade da mentira, que é o mesmo que dizer “vida real”. Nas palavras que JP nos deu: “Não acredito que importa tanto o facto de um romance ser baseado numa experiência prévia. Ele deve ser a própria experiência, para quem lê e para quem escreve.” Estamos com ele e lembramos que este livro vai atrás da história que também deu em filme, escrito pelo autor, com o o título “A Morte de JP Cuenca”, entre a ficção e o documentário, estreado em Outubro no Brasil.
Esta morte que por aqui passa sem pedir licença mostra no romance um autor que, ao mesmo tempo que dá por si morto, percebe que perdeu a inspiração e o método na escrita, e encontrá-los parece tarefa impossível. Porque João Paulo não consegue escrever todos os dias, é assim que funciona. E, já se sabe, há dias piores que outros. Quem diz dias diz meses, porque não? “Durante os quatro anos que levei a escrever esse romance, em nenhum momento acreditei plenamente que fosse terminá-lo.” E esta frase é muito mais valiosa quando já conhecemos a história toda de “Descobri Que Estava Morto”. Não vamos dizer porquê, e já agora aproveitamos e participamos da trama. Não é preciso agradecer.
Cuenca aproveita o enredo para dizer que foi a cidade que o matou, no meio da multidão que de tão concreta nos torna a quase todos anónimos. É mesmo assim que acontece, ainda que JoãoPaulo nunca vá viver noutro ambiente: “Meus livros sempre se passam em cidades, é a única vida que parece possível para mim. Sou um urbanóide. Montanhas e paisagens verdes me exasperam.” Certo, mas isto não quer dizer que o homem se dê bem com a vizinhança. É uma espécie de misantropia feita de betão: “Se pudesse, morava numa cidade vazia. Eu gosto de cidades, mas não gosto de multidões. Por isso gosto de Lisboa: sempre parece faltar alguém na rua.”
E daqui para o Rio foi um saltinho, ninguém deu por nada. Porque, se a cidade é maravilhosa, provavelmente resolve esse problema. Cuenca diz-nos que não, que “viver no Rio de Janeiro apenas torna o dia-a-dia muito mais infernal. Para tornar essa experiência interessante é necessária uma idealização que abandonei há muito tempo”. De tal maneira que o autor mudou para São Paulo. Não pretende voltar a viver no Rio, a vida que, como escreve neste livro, “é feita entre os brancos do asfalto e as favelas”. Mas não está tudo melhor nesse campeonato de contrastes?, perguntamos nós que nunca por lá passámos: “Não está nada mais controlado. Uns vivem sob o que na prática é uma ditadura militar e outros protegidos por muros e portarias electrónicas. No meio está a praia e a paisagem inútil.”
Reconhecemos o nosso pecado, o de não conhecer nem morro nem calçadão. Antes da despedida prometemos um dia corrigir esse grave erro. Aproveitamos as dicas turísticas do escritor, porque não há melhor guia que o carioca, mesmo que este seja dissidente e não jogue futebol: “Você deve ir ao Real Gabinete Português de Leitura, belo prédio neomanuelino no Centro. Ao restaurante Nova Capela, na Lapa. Ao Pavão Azul, bar com deliciosas pataniscas em Copacabana. À Adega Pérola, botequim de petiscos, no mesmo bairro. Ir ao Museu de Arte Moderna, no Aterro, e dar uma volta por ali. E pronto, já está. Pode voltar.” Obrigado, João Paulo, o morto mais vivo dos últimos tempos.
“Descobri Que Estava Morto” é apresentado no dia 28 às 19h00 na livraria Ler Devagar, em Lisboa. Amanhã Cuenca está numa mesa redonda com Valério Romão e Bruno Vieira Amaral, no FOLIO, em Óbidos, às 11h00.