Contra a direita neoliberal


Como salienta Georges Corm, os economistas neoliberais inspirados pelas teorias de Hayek e Friedman nem se dão conta das suas próprias contradições e são os primeiros a pedir que o Estado os socorra quando rebentam as crises.


© Ana Brigida

Num magnífico livro publicado há cinco anos (“Le nouveau gouvernement du monde”, edições La Découverte, 2010), o professor Georges Corm, economista e ex-ministro das Finanças do Líbano, salienta que os teóricos neoliberais da economia se apropriaram indevidamente do pensamento liberal clássico e do iluminismo, lançando às urtigas o humanismo e o racionalismo, considerados perigosos para a liberdade individual e a livre empresa.

Basicamente, o que os neoliberais fizeram foi levar ao paroxismo a tendência dominante dos economistas contemporâneos para ler de forma truncada a vertente económica do pensa-mento liberal clássico, denotando assim a sua incompreensão, ou as mais das vezes o seu oportunismo ao serviço de uma causa ideológica distorcida até ao fanatismo.

Como bem o demonstrou o economista chileno Francisco Vergara (“Liberalisme et éthique”, em “L’Économie politique”, n.o 6, 2.o trimestre 2000), “os economistas ortodoxos de hoje caricaturaram o pensamento dos autores liberais de ontem, designadamente os da escola utilitarista (como Jeremy Bentham ou John Stuart Mill)”.

Estes, como explica Vergara, não consideravam o egoísmo individual o motor principal da actividade económica. Para eles, o “utilitarismo” era sempre entendido como utilitarismo público, ou seja, o bem--estar da colectividade. Mesmo Adam Smith ou David Ricardo consideravam necessária a intervenção do Estado em bastantes domínios – em certos casos, inclusive, para a atribuição de um monopólio de exploração.

Os pensadores neoliberais distorceram e instrumentalizaram escandalosamente a aspiração à liberdade dos principais filósofos do iluminismo e dos grandes filósofos liberais ingleses. Não se perderia nada se hoje fosse mais conhecida, por exemplo, uma obra quase esquecida de Adam Smith, publicada em 1759, “The Theory of Moral Sentiments” (“A Teoria dos Sentimentos Morais”), por muitos considerada a sua obra-prima.

Todavia, a teoria neoliberal é completamente dominada pela obra de Friederich Hayek (“The Road to Serfdom”, “O Caminho da Servidão”, 1944), para quem o inimigo da liberdade é sempre o Estado, por pretender intervir na vida dos cidadãos para os proteger; e pela obra de Milton Friedman (“Capitalism and Freedom”, The University of Chicago Press, Chicago, 2002), que instituiu a escola monetarista e considera indissociáveis capitalismo e liberdade económica e política, assim reforçando a crença de tipo metafísico na superioridade do sistema de mercado liberto de qualquer intervenção do Estado, porque só o mercado livre pode garantir simultaneamente a liberdade e a felicidade do homem. Ambos foram galardoados com o Prémio Nobel da Economia: Hayek em 1974 e Friedman em 1976.

Escusado seria dizer, mas digo, que ambos nutriam profundo desprezo pela obra do grande economista inglês John Maynard Keynes, que demonstrou, através dos seus importantíssimos trabalhos, a necessidade de o Estado dispor de amplos meios de intervenção na economia para enquadrar e regular a actividade económica, assegurar o pleno emprego e impedir as crises cíclicas do capitalismo moderno.

Remato com a ironia das ironias. Na prática, como salienta o professor Georges Corm, os economistas neoliberais inspirados pelas teorias de Hayek e Friedman nem se dão conta das suas próprias contradições, e são os primeiros a pedir que o Estado os socorra quando rebentam as crises, como vimos na que eclodiu em 2008-2009 e ainda persiste. Claro que, para eles, se trata de uma intervenção na esfera dos interesses privados que só pode ser provisória e deve cessar mal esteja garantido o regresso ao “normal funcionamento dos mercados”.

Pareceu-me oportuno chamar a atenção para o cenário teórico subjacente ao prolongamento da desastrosa governação da PàF, com eventual aval político do PS… 

Cronista, jornalista, ex-deputado
e ex-secretário de Estado português

Contra a direita neoliberal


Como salienta Georges Corm, os economistas neoliberais inspirados pelas teorias de Hayek e Friedman nem se dão conta das suas próprias contradições e são os primeiros a pedir que o Estado os socorra quando rebentam as crises.


© Ana Brigida

Num magnífico livro publicado há cinco anos (“Le nouveau gouvernement du monde”, edições La Découverte, 2010), o professor Georges Corm, economista e ex-ministro das Finanças do Líbano, salienta que os teóricos neoliberais da economia se apropriaram indevidamente do pensamento liberal clássico e do iluminismo, lançando às urtigas o humanismo e o racionalismo, considerados perigosos para a liberdade individual e a livre empresa.

Basicamente, o que os neoliberais fizeram foi levar ao paroxismo a tendência dominante dos economistas contemporâneos para ler de forma truncada a vertente económica do pensa-mento liberal clássico, denotando assim a sua incompreensão, ou as mais das vezes o seu oportunismo ao serviço de uma causa ideológica distorcida até ao fanatismo.

Como bem o demonstrou o economista chileno Francisco Vergara (“Liberalisme et éthique”, em “L’Économie politique”, n.o 6, 2.o trimestre 2000), “os economistas ortodoxos de hoje caricaturaram o pensamento dos autores liberais de ontem, designadamente os da escola utilitarista (como Jeremy Bentham ou John Stuart Mill)”.

Estes, como explica Vergara, não consideravam o egoísmo individual o motor principal da actividade económica. Para eles, o “utilitarismo” era sempre entendido como utilitarismo público, ou seja, o bem--estar da colectividade. Mesmo Adam Smith ou David Ricardo consideravam necessária a intervenção do Estado em bastantes domínios – em certos casos, inclusive, para a atribuição de um monopólio de exploração.

Os pensadores neoliberais distorceram e instrumentalizaram escandalosamente a aspiração à liberdade dos principais filósofos do iluminismo e dos grandes filósofos liberais ingleses. Não se perderia nada se hoje fosse mais conhecida, por exemplo, uma obra quase esquecida de Adam Smith, publicada em 1759, “The Theory of Moral Sentiments” (“A Teoria dos Sentimentos Morais”), por muitos considerada a sua obra-prima.

Todavia, a teoria neoliberal é completamente dominada pela obra de Friederich Hayek (“The Road to Serfdom”, “O Caminho da Servidão”, 1944), para quem o inimigo da liberdade é sempre o Estado, por pretender intervir na vida dos cidadãos para os proteger; e pela obra de Milton Friedman (“Capitalism and Freedom”, The University of Chicago Press, Chicago, 2002), que instituiu a escola monetarista e considera indissociáveis capitalismo e liberdade económica e política, assim reforçando a crença de tipo metafísico na superioridade do sistema de mercado liberto de qualquer intervenção do Estado, porque só o mercado livre pode garantir simultaneamente a liberdade e a felicidade do homem. Ambos foram galardoados com o Prémio Nobel da Economia: Hayek em 1974 e Friedman em 1976.

Escusado seria dizer, mas digo, que ambos nutriam profundo desprezo pela obra do grande economista inglês John Maynard Keynes, que demonstrou, através dos seus importantíssimos trabalhos, a necessidade de o Estado dispor de amplos meios de intervenção na economia para enquadrar e regular a actividade económica, assegurar o pleno emprego e impedir as crises cíclicas do capitalismo moderno.

Remato com a ironia das ironias. Na prática, como salienta o professor Georges Corm, os economistas neoliberais inspirados pelas teorias de Hayek e Friedman nem se dão conta das suas próprias contradições, e são os primeiros a pedir que o Estado os socorra quando rebentam as crises, como vimos na que eclodiu em 2008-2009 e ainda persiste. Claro que, para eles, se trata de uma intervenção na esfera dos interesses privados que só pode ser provisória e deve cessar mal esteja garantido o regresso ao “normal funcionamento dos mercados”.

Pareceu-me oportuno chamar a atenção para o cenário teórico subjacente ao prolongamento da desastrosa governação da PàF, com eventual aval político do PS… 

Cronista, jornalista, ex-deputado
e ex-secretário de Estado português