Já o tínhamos ouvido cantar em português, mas nunca num disco inteiro. Como se isso não fosse surpresa suficiente, presenteou alguns fãs com a entrega do novo álbum em mãos e sem se fazer anunciar. Uma ideia entre as muitas que atravessam a sua mente e que vai peneirando e tentando dar rumo. Mais difícil é tentar não pensar no projecto que ainda está por vir. Para já, há este “Futuro Eu”, ponto de partida para várias possibilidades e símbolo daquilo que se pode fazer depois dos 40, ou seja, tudo.
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Anunciou este disco com uma carta no seu site. Nela diz que nunca um trabalho musical esteve tão perto da sua “forma desajeitada, inconstante, revoltada, inquieta e sedenta de viver”. Porquê?
Acho que tem a ver com a idade, com o facto de à medida que as coisas avançam na minha vida, ter uma relação muito maior com aquilo que faço. Os temas são mais complexos, têm mais ramificações e muito mais detalhadas do que antes. Compreendo melhor agora uma série de coisas, e por isso é que à medida que vou escrevendo e que os anos vão passando, o que escrevo acaba por me estar muito mais próximo do que alguma vez esteve. Também teve a ver com o processo, porque a ideia de me fechar numa casa e de fazer um disco, como oposição, na altura, à reunião dos Silence 4, empurrou-me para um sítio muito específico onde senti que havia alguma coisa nova a acontecer e descobri uma parte de mim diferente.
Diz que não é de nostalgias, mas parece ter havido, com essa reunião, um olhar retrospectivo. Isso reflecte-se no disco?
Não é bem por aí, porque a reunião dos Silence 4 não teve uma ideia nostálgica.
A Sofia tinha acabado de passar por uma coisa terrível e quando nos juntámos foi muito mais o celebrar do presente e do futuro do que propriamente o passado. As músicas eram só uma chave para podermos fazer isso. O problema foi revisitá-las. Tocar aquelas músicas é que era o mais complexo, porque soavam-me um bocado como uma espécie de amor antigo. Gosto delas, tenho boas recordações, mas já não sinto o mesmo. Ao mesmo tempo, ter de as revisitar fez com que quisesse fazer as coisas de maneira radicalmente diferente quando comecei a escrever este disco.
Esse isolamento na casa dos seus avós já tinha acontecido ou foi a primeira vez?
Sempre aconteceu, mas não desta maneira bruta [risos]. Geralmente ia lá um dia ou dois. Agora não. Foram visitas sistemáticas durante semanas, meses, e durante as quais acabaram por acontecer coisas de que não estava à espera, às vezes a fazer música, outras apenas a escrever coisas. Mas todas empurravam no mesmo sentido e por isso saíram tantas canções. No disco estão 11, 12, porque há uma faixa escondida, e mais os lados B, mas no fundo fiz 40 canções, das quais só 20 chegaram ao estúdio.
Este é o primeiro álbum inteiramente em português. Qual foi o maior desafio?
O maior problema teve a ver com a fonética, com a forma como as coisas soam em português e soam em inglês. Às vezes resultavam num plano linguístico, num plano fonético, mas depois não resultavam num plano musical, e isso foi uma luta muito grande. Uma canção esteve pendurada um mês por causa de uma frase, não conseguia achar o caminho certo para ela. Basicamente estava sempre a falhar naquilo que achava que ia resultar e falhei mesmo muito. Escrevo em inglês há anos, é um território confortável para mim. Mas quando alguém faz algo em que não está assim tão confortável, esse factor de novidade é acelerador de tudo e acaba-se por tentar agarrar essa ideia nova.
E de onde veio esta decisão?
Escrever em português, sempre escrevi. Gosto de escrever, tenho cadernos, nem que seja para anotar ideias, tento escrever um pouco de tudo. Agora, escrever letras e cantá-las não era muito comum. Nem sou o tipo de cantor que escreve uma letra e a música. Por norma, escrevo canções todas de uma vez. Vou escrevendo a letra, faço a música. Portanto, a escrita em português surge no meio de um caos. Estava com uns headphones na sala dos meus avós e era muito tarde, quatro ou cinco da manhã, já andava naquilo há muito tempo. E de repente surge-me essa ideia e cantei-a. Senti um arrepio e, quando isso acontece, eu persigo isso, que é algo muito raro, abstracto e difícil de agarrar. Se o conseguir fazer, tanto melhor, posso chegar a um sítio onde nunca estive e foi isso que fiz. Persegui-a durante dias e dias, semanas, meses, até aquilo ser parte de uma coisa maior.
E quando chegou aí, ou seja, ao “Futuro Eu”, o que sentiu quando se ouviu a cantar um disco inteiro em português?
É estranho, apesar de a certa altura já estar familiarizado. Houve um clique, aconteceu, não quando o disco ficou concluído, mas a meio do processo. Quando já estava no estúdio a gravar as canções é que comecei a aceitar melhor aquilo tudo, porque não estava habituado a cantar em português dessa forma continuada. Mas a partir do momento em que aceitei todo aquele universo novo, soou tudo natural.
Além do português, o que há mais de novo neste trabalho? Porque o “Seasons”, apesar de manter o inglês, já tinha sido um grande desafio face aos anteriores…
Sim, isso foi uma loucura. Mais facilmente escrevo um disco em português de novo do que faço dois discos num ano. Tem de ser diferente, porque quando se faz música faz-se também para as palavras, é inevitável, faz-se música para a forma como se dizem as coisas. Este disco não podia ser assim se tivesse sido cantado em inglês ou se o tivesse feito como no passado.
A grande mudança está no facto de as canções e a música se aproximarem da língua. Como uma espécie de magnetização, foram engolidas por esta ideia simples. Não quer dizer que agora vá cantar sempre em português, mas acabou por ser um território que me trouxe coisas de que não estava à espera e me fez descobrir outras que não sabia.
Sentiu-se mais exposto por estar a cantar na língua materna?
Claro, completamente. Costumo dizer que agora é mais difícil esconder dos meus pais o que estou a cantar. Não é que eles não entendessem, mas era preciso uma segunda leitura. Acaba por ser uma abordagem muito mais radical nesse sentido. Mas acho que cheguei a um ponto na vida em que não quero mesmo saber. Sempre disse que quando passasse a barreira dos 40 ia ficar completamente louco, ia chegar àquela idade em que uma pessoa já dizia e fazia tudo o que lhe apetecia, porque se tem uma noção muito mais clara do tamanho que a vida tem e de que não há muito tempo a perder com a ilusão de que a levamos de uma forma mais interessante se guardarmos coisas para nós.
Estudou cinema. Isso influencia a maneira como faz os discos?
Não tenho dúvidas que me influenciou imenso, não o curso, mas o interesse pela imagem e pelo cinema. Mesmo o ter estado em Peniche teve tudo a ver com isso. Os quilómetros que fiz de bicicleta pelo Baleal, o cabo Carvoeiro e o facto de ter sido no Inverno – não via quase ninguém –, esse estado de espírito acaba por ser muito cinematográfico. Aconteceu-me tanto nesse retiro e quando uma pessoa está a perseguir uma coisa tudo isso é atraído para o fosso criativo onde estamos a reunir coisas.
Controla todas as vertentes do seu trabalho. É por essa relação com a imagem ou para que tudo corra como idealizado?
É por isso tudo e também porque sou um control freak. E as primeiras pessoas a saber isso são os meus músicos. Sabem que me é muito difícil largar uma ideia que achava interessante. Mas, lá está, hoje faço-o mais facilmente que no passado. Tem a ver com isso e com o facto de gostar mesmo muito de fazer essas coisas. As capas deste disco foram uma prova disso. Quando as coisas estão feitas, olho para elas e vejo aquilo por que passei para chegar ali e as pessoas que conheci por causa disso. A camisa amarela com barcos, que está numa das capas, foi comprada no eBay a um senhor americano a quem expliquei o objectivo e que achou muita graça. Depois mandei-lhe a fotografia. Qual é a probabilidade de isto acontecer? [risos]
E qual é a probabilidade de um cantor entregar pessoalmente o novo disco aos fãs? Como se lembrou de fazer isso?
Sinceramente, penso: “Se fosse fã, o que gostaria que acontecesse?” E depois faço–o. É tão simples quanto isso. Faço o que gostaria que me acontecesse.
Sendo um control freak, seria difícil vê-lo às ordens de outros? Por exemplo, se lhe propusessem fazer a banda sonora de um filme em que tivesse de seguir o que outra pessoa idealizou?
Não. Aliás, essa é uma das coisas que mais gostava de fazer. Nunca tive oportunidade, na realidade nunca me convidaram, mas também no meu trabalho não costumo fazer instrumentais, os meus ambientes são muito mais pop rock. Mas adorava fazer isso, seria um desafio muito engraçado porque, no fundo, já é o que faço, só que faço-o para mim e para o meu contexto. Fazer música de filmes para outros seria incrível.
“Futuro Eu” vai ser apresentado ao vivo em breve. O que pode adiantar sobre isso?
Há uma série de coisas a correr e que não posso revelar. Aliás, nem é que não possa dizer, mas um concerto vive das pessoas que lá estão e de estas o viverem. Por isso é que desaconselho tanto os telemóveis e as selfies. Porque o concerto é sobre a ideia de estarmos juntos. E espero que a loucura que estamos a preparar e vai ser intensa seja, de alguma forma, tão envolvente que as pessoas estejam só connosco.