A hora das tripas. Nunca os intestinos estiveram tão na moda

A hora das tripas. Nunca os intestinos estiveram tão na moda


A vida secreta dos intestinos. Tudo o que quer saber e tem vergonha de perguntar. Os intestinos são a última tendência do mercado livreiro sobre saúde. Não é só uma moda. É também resultado de investigações que mostram agora todo o potencial das entranhas no nosso bem-estar.


Um unicórnio a defecar gelados coloridos tornou-se viral na última semana e há dois novos livros em português sobre como ter entranhas felizes. O que se passa? 

Quase tudo pode acontecer na internet. Isso inclui um unicórnio a defecar gelados coloridos tornar-se viral? Robert Edwards estava convencido de que sim e não se enganou. O inventor do “Squatty Potty” queria uma publicidade que desse novo fôlego ao negócio familiar e conseguiu. O degrau de casa de banho cruzou todas as fronteiras por causa do dito unicórnio e em Portugal até já teve direito a passar na televisão, no fecho do último episódio do programa “Eixo do Mal”.

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O vídeo foi publicado nas redes sociais no dia 6 de Outubro e conta com mais de 28 milhões de visualizações. O degrau da família Edwards nasce em 2011 e Robert admite não ter qualquer formação médica: os estudos a sugerir que, se uma pessoa usar um banco para elevar as pernas e ficar como que agachada na sanita, em vez de sentada em ângulo recto, vai conseguir libertar melhor os intestinos já existiam.

Limitaram-se a criar um produto, explica ao i. Se realmente funciona, não é consensual – muito menos que faça diferença comprar o “Squatty Potty”, que pode custar até 60 dólares, ou usar outro degrau qualquer –, mas o fascínio pelo unicórnio encarna bem o espírito da revolução em curso: nunca se ouviu falar tanto de intestinos. 

O primeiro livro que trata os intestinos como o nosso segundo cérebro foi publicado em 1998 por Michael Gershon

Só este mês chegam às bancas em Portugal dois novos livros sobre intestinos: o “Intestino Feliz” e “O Intestino – O nosso segundo cérebro”. Se está encantado com os títulos, há mais um: “A Vida Secreta dos Intestinos” saiu em Maio. As editoras nacionais não terão enlouquecido – lá fora há outros quantos livros do género publicados este ano. 

Para os autores, há todos os motivos: os últimos 15 anos marcam uma viragem no que se sabe sobre o papel dos intestinos na saúde e bem-estar, explicam ao i. Mais dúvidas tem quem está fora do burburinho intestinal. Jorge Canena, médico gastrenterologista no Hospital CUF Infante Santo e no Hospital Polido Valente, sublinha que, apesar de haver algumas novidades científicas, ainda não há nenhum conselho inovador a dar. Para o especialista, tudo não passa de uma moda que aproveita o crescente interesse na cultura do bem-estar. “Da mesma forma que depois do sucesso de ‘Código Da Vinci’ as livrarias estavam cheias de livros sobre sociedades secretas, hoje em dia só se vê livros sobre saúde, bem-estar e nutrição, e os intestinos são a última tendência”, diz.

Agachar ou não

Começando pela lição do unicórnio, Canena não vê provas de que haja vantagens em elevar as pernas na casa de banho, embora reconheça que tudo o que sejam estratégias não invasivas para ajudar as pessoas a lidar com problemas de obstipação – que afectam 10% a 20% da população – tem o lado positivo de combater o recurso excessivo a laxantes.

Mais entusiasmo tem Irina Matveikova, médica espanhola autora de “O Intestino Feliz”. Para a especialista, é mesmo mais “fisiológico” sentar-se na sanita com as pernas em ângulo agudo, sendo um conselho que dá aos seus doentes. 

Matveikova vê no vídeo uma forma de “educar a população” para a saúde dos intestinos, algo que diz fazer falta. E conta que foi também por isso que decidiu escrever o seu livro, hoje nas bancas em Portugal, e no qual alerta que um dos grandes problemas é não se guardar tempo no dia-a-dia para uma boa higiene intestinal.

No livro, a médica ironiza que este é um drama em muitas casas em que as mulheres com prisão de ventre ficam frustradas com os companheiros que ficam longos minutos na casa de banho todas as manhãs. Matveikova explica que esta devia ser a regra e que é porque eles têm mais dificuldades em concentrar-se em várias coisas ao mesmo tempo que dão tempo ao W.C. e têm menos problemas nos intestinos.

As novidades

Se até aqui parece senso comum, haverá novidades que justifiquem tanto burburinho? Uma das principais ideias nos novos livros é que o intestino é como se fosse o nosso segundo cérebro. Em causa está o chamado sistema nervoso entérico, a rede de neurónios que abrange todo o sistema digestivo. Tornou-se popular em 1998, quando o médico e investigador Michael Gershon, do Centro Médico da Universidade Columbia, publicou um livro que se chamava precisamente “The Second Brain”.

Sabe-se que contém qualquer coisa como 100 milhões de neurónios em permanente comunicação com o cérebro superior, sendo explicação para a famosa sensação das borboletas no estômago quando estamos nervosos. Nas últimas décadas percebeu-se que nos intestinos, tal como no cérebro, são libertados neurotransmissores. E que, por exemplo, 90% da serotonina no nosso corpo – um dos neurotransmissores ligados à regulação do apetite, sono e à sensação de felicidade – é produzida no tracto digestivo.

Flora intestinal

Uma segunda frente que liga com esta é o papel que a flora intestinal tem nestas dinâmicas. Hoje sabe–se que há 100 mil milhões de células de micróbios nos nossos intestinos, o que é dez vezes mais do que as células que temos no corpo. “Ou seja, praticamente não somos nós”, ironiza na contracapa do livro “Follow Your Gut” outro autor do movimento intestinal, Rob Knight, investigador na Universidade da Califórnia. 

Temos 100 milhões de neurónios no sistema digestivo, em comunicação com o cérebro superior

Em 2012, quase uma década depois de ser concluída a análise do genoma humano, o consórcio do Projecto Microbioma Humano, liderado pelos EUA, anunciou ter completado a identificação das bactérias e vírus que povoam diferentes partes do nosso corpo, como boca, nariz e pele, mas em particular o intestino. Quase em simultâneo, vários estudos têm ligado a presença ou não de determinadas bactérias a doenças como a depressão, obesidade ou acne. E, por exemplo, este ano uma equipa do Instituto de Tecnologia da Califórnia ligou algumas espécies a uma maior produção de serotonina. 

O papel das bactérias

“Sabemos há mais de 100 anos que há uma grande comunidade de bactérias nos nossos intestinos, mas só na última década é que houve tecnologia para as estudar, fazendo--nos perceber que não estão lá apenas para nos ajudar a fazer a digestão – como se pensava no passado –, mas activam o sistema imunitário, regulam o nosso metabolismo e estão mesmo ligadas ao nosso cérebro”, resume ao i Erica Sonnenburg, investigadora em Stanford. Isto significa que podem influenciar toda uma série de doenças do sistema imunitário como a asma, alergias ou mesmo doenças inflamatórias do intestino, além de “potencialmente poderem influenciar o aparecimento de doenças como o autismo e a depressão”, acrescenta a co-autora de “The Good Gut”, publicado em Abril.

Estando a ciência a fazer o seu caminho, que conselhos há? Para Sonnenburg, a melhor dica ainda é relativamente básica: uma dieta rica em fibras, a alimentação mais saudável para as bactérias dos nossos intestinos que, de outra forma, são forçadas a ir buscar energia às mucosas intestinais, o que parece gerar desequilíbrios. 

Já Irina Matveikova sublinha que o essencial é mesmo não descurar a saúde intestinal. “Perante um qualquer sintoma, dor no estômago ou problema em evacuar, deve procurar-se ajuda, e não conviver anos com o problema porque, além de fazer mal à saúde, vai fazer com que a pessoa se sinta pior.” Outro conselho da especialista passa por fazer suplementos probióticos para regular a flora intestinal duas vezes por ano e, para pessoas com vidas mais stressadas, uma sessão anual de hidroterapia do cólon – uma limpeza profissional à tripa. 

Para Canena, não há receitas mais eficazes que as tradicionais: uma dieta equilibrada, dois litros de água por dia e exercício. O resto, por agora, são tiros no escuro. “A resistência é normal”, contrapõe Matveikova. “A medicina tende a ser muito precisa nas soluções e requer muitos estudos, mas há cada vez mais estudos e não estamos apenas a especular.”