O equívoco de Cavaco


Quem ganha o confronto para primeiro-ministro deve ser nomeado como tal pelo PRe, uma vez legitimado, fica com o ónus da estabilidade parlamentar.


© Armando Franca/AP

Desde que Cavaco Silva tomou a palavra na semana passada, depois da reflexão (!!) realizada durante o dia 5 de Outubro, o país político-partidário entrou numa deriva imprevisível.

O PR esteve significativamente imperfeito. Em vez de reunir com todos os partidos com assento parlamentar, auscultar os seus objectivos para a legislatura, ponderar e estimular desde logo eventuais acordos de governo ou de incidência parlamentar e, acto contínuo, chamar (em primeiro e por último) Passos Coelho (líder do partido com mais mandatos parlamentares na coligação que reuniu mais votos nas eleições) para o nomear primeiro ministro – como teria que nomear António Costa se o PS tivesse vencido – e solicitar-lhe a equipa de governo, Cavaco Silva entrou em contradição com a conduta adoptada com o minoritário José Sócrates em 2009 (ainda que sem maioria unida contra) e fez o ilógico: pediu a Passos Coelho que lhe apresentasse uma solução de governabilidade – leia-se, estabilidade parlamentar – como pressuposto da viabilização de um governo por si liderado.

Não é de todo esse o método que corresponde ao respeito pela Constituição, que ordena assim: “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais. / Os restantes membros do Governo são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro.”

Não se trata de mero formalismo jurídico, avesso a leituras substantivas do parlamento. Trata-se de um procedimento balizado. O procedimento “constitucional” passaria por indigitar Passos Coelho como primeiro-ministro do futuro governo (uma vez recebidos  todos os partidos) e Passos Coelho, já nessa condição e legitimação presidencial (depois da legitimidade do voto), asseguraria as condições, se possível, para um governo com apoio ou cooperação.

Em primeiro lugar, naturalmente, com o CDS, em que houve entendimento pré-eleitoral. Depois com o PS, em que – assim parecia ser à primeira vista – há diferenças para limar e entendimentos nada “fracturantes” possíveis de alcançar.

Mas isso é ónus (numa segunda fase) de Passos Coelho e Paulo Portas, interessados, depois de empossados, em tornar viável (previamente ou não) um governo e, logo depois, um orçamento; não é encargo e responsabilidade do PR, interessado naturalmente na governabilidade mas não ao custo de desvirtuar a vontade eleitoral predominante (mesmo que não maioritária na aritmética).

Retirando de forma sibilina a Passos Coelho a “legitimidade eleitoral” da vitória, pela circunstância de a coligação não ter obtido a maioria dos deputados, Cavaco deu imediatamente a António Costa – sem a nomeação de Passos Coelho – a oportunidade e o pretexto para fazer uma ronda negocial como putativo primeiro-ministro, num infindável conjunto de cenários que até poderiam passar pela constituição de um governo minoritário do PS caucionado pela passividade colaborativa de PCP e BE – como que dando voz a uma outra “vitória” eleitoral, a da maioria contra a coligação.

Porém, não é essa a vitória decisiva de acordo com a Constituição – a vitória é a que corporiza a figura do primeiro ministro no partido vencedor. E essa é a leitura que os “resultados eleitorais” impõem. Passos ganhou a Costa. A mesma leitura e procedimento que se teriam necessariamente que ter se Costa tivesse ganho a Passos, independentemente de ulterior acordo do PS com os restantes partidos. Aqui chegados, por causa do pecado original de Cavaco em ocaso, estamos nisto… 

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto
Escreve à quinta-feira

O equívoco de Cavaco


Quem ganha o confronto para primeiro-ministro deve ser nomeado como tal pelo PRe, uma vez legitimado, fica com o ónus da estabilidade parlamentar.


© Armando Franca/AP

Desde que Cavaco Silva tomou a palavra na semana passada, depois da reflexão (!!) realizada durante o dia 5 de Outubro, o país político-partidário entrou numa deriva imprevisível.

O PR esteve significativamente imperfeito. Em vez de reunir com todos os partidos com assento parlamentar, auscultar os seus objectivos para a legislatura, ponderar e estimular desde logo eventuais acordos de governo ou de incidência parlamentar e, acto contínuo, chamar (em primeiro e por último) Passos Coelho (líder do partido com mais mandatos parlamentares na coligação que reuniu mais votos nas eleições) para o nomear primeiro ministro – como teria que nomear António Costa se o PS tivesse vencido – e solicitar-lhe a equipa de governo, Cavaco Silva entrou em contradição com a conduta adoptada com o minoritário José Sócrates em 2009 (ainda que sem maioria unida contra) e fez o ilógico: pediu a Passos Coelho que lhe apresentasse uma solução de governabilidade – leia-se, estabilidade parlamentar – como pressuposto da viabilização de um governo por si liderado.

Não é de todo esse o método que corresponde ao respeito pela Constituição, que ordena assim: “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais. / Os restantes membros do Governo são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro.”

Não se trata de mero formalismo jurídico, avesso a leituras substantivas do parlamento. Trata-se de um procedimento balizado. O procedimento “constitucional” passaria por indigitar Passos Coelho como primeiro-ministro do futuro governo (uma vez recebidos  todos os partidos) e Passos Coelho, já nessa condição e legitimação presidencial (depois da legitimidade do voto), asseguraria as condições, se possível, para um governo com apoio ou cooperação.

Em primeiro lugar, naturalmente, com o CDS, em que houve entendimento pré-eleitoral. Depois com o PS, em que – assim parecia ser à primeira vista – há diferenças para limar e entendimentos nada “fracturantes” possíveis de alcançar.

Mas isso é ónus (numa segunda fase) de Passos Coelho e Paulo Portas, interessados, depois de empossados, em tornar viável (previamente ou não) um governo e, logo depois, um orçamento; não é encargo e responsabilidade do PR, interessado naturalmente na governabilidade mas não ao custo de desvirtuar a vontade eleitoral predominante (mesmo que não maioritária na aritmética).

Retirando de forma sibilina a Passos Coelho a “legitimidade eleitoral” da vitória, pela circunstância de a coligação não ter obtido a maioria dos deputados, Cavaco deu imediatamente a António Costa – sem a nomeação de Passos Coelho – a oportunidade e o pretexto para fazer uma ronda negocial como putativo primeiro-ministro, num infindável conjunto de cenários que até poderiam passar pela constituição de um governo minoritário do PS caucionado pela passividade colaborativa de PCP e BE – como que dando voz a uma outra “vitória” eleitoral, a da maioria contra a coligação.

Porém, não é essa a vitória decisiva de acordo com a Constituição – a vitória é a que corporiza a figura do primeiro ministro no partido vencedor. E essa é a leitura que os “resultados eleitorais” impõem. Passos ganhou a Costa. A mesma leitura e procedimento que se teriam necessariamente que ter se Costa tivesse ganho a Passos, independentemente de ulterior acordo do PS com os restantes partidos. Aqui chegados, por causa do pecado original de Cavaco em ocaso, estamos nisto… 

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto
Escreve à quinta-feira