Lura. Uma herança crioula tem muito mais valor

Lura. Uma herança crioula tem muito mais valor


A cantora de ascendência cabo-verdiana acaba de lançar “Herança”, o seu sexto álbum de estúdio.


A cantora de ascendência cabo-verdiana acaba de lançar “Herança”, o seu sexto álbum de estúdio, centrado nos antepassados do país onde agora vive. Hoje à noite, a de certa forma também herdeira de Cesária, dá um concerto no Tivoli, em Lisboa.

A música de Lura chegou primeiro a Cabo Verde do que a própria. Nascida em Lisboa, a cantora que inicialmente queria seguir Educação Física só conseguiu visitar o país onde nasceram os seus pais aos 21 anos. “O meu disco ‘Nha Vida’ [1997] chegou a Cabo Verde antes de mim, apesar de já estar a planear há bastante tempo visitar a terra”, conta-nos por telefone antes de entrar num directo para a televisão. “O meu pai é de Santiago, a minha mãe de Santo Antão e sempre tive vontade de conhecer as pessoas e os lugares. Ao editar um disco em crioulo uma das minhas maiores vontades era essa, ser aceite em Cabo Verde. Felizmente foi uma aceitação imediata que me deixou muito feliz.”

Têm sido dias agitados de promoção do mais recente álbum, “Herança”, lançado em Setembro, e o primeiro de originais desde 2009. Um intervalo demasiado longo? Talvez mas “era preciso parar”, diz a cantora de 40 anos. “Tive necessidade de parar um pouco, repensar coisas, porque há alturas em que convém reflectir. Em vez de ser a máquina a levar-nos, nós a levarmos a máquina e a pegar nas coisas com as nossas mãos. Foi uma fase de descanso e reflexão mas agora estou de volta com mais força ainda.”

É preciso força, de facto, e a qualquer momento Lura pode ser chamada para o directo da TV para mais uma de muitas entrevistas. Hoje vai subir ao palco do Tivoli, em Lisboa, para apresentar a sua nova “Herança”, o sexto disco cantado em crioulo, língua que curiosamente só aprendeu depois do português. “Para não ter problemas na escola”, explica-nos mais tarde.

Nasceu em Portugal, mas desde sempre teve contacto com a comunidade cabo-verdiana. “Sempre comi pratos cabo-verdianos, os meus pais falavam cabo-verdiano entre eles, os amigos também e eu entretanto ia ficando cada vez mais e mais curiosa com a cultura, a música e tradição de Cabo Verde.” 

São precisamente essas histórias que foi aprendendo e que os “antepassados” lhe deixaram que quer transmitir neste seu novo trabalho, repleto de colaborações. “É o meu aprofundar do regresso às origens”, começa. “Vou mais atrás na História [do país], desde a escravatura até à luta pela independência e pela aceitação de alguns ritmos cabo-verdianos como o funaná, por um apelo à consciência social ou assuntos como a saudade de quem saiu, deixou a terra e não pode voltar. ”

A 31 de Julho, no dia do 40.º aniversário de Lura, o álbum já estava pronto a sair de propósito para coincidir com o Dia da Mulher Africana. O lançamento acabou por acontecer mais tarde, mas a homenagem à “mulher crioula e lutadora” mantém-se na faixa “Maria di Lida”, o primeiro single do álbum.

“É uma homenagem à mulher lutadora, cabo-verdiana neste caso, aquela que não fica em casa à espera que as coisas aconteçam e faz tudo para dar dignidade à sua vida e à dos seus filhos”, explica. 

“O facto de viver agora em Cabo Verde [na Cidade da Praia] foi decisivo para escolher este tema porque vejo de perto a luta destas mulheres. Tive uma conversa com uma mulher que vendia frutas na rua e que estava muito orgulhosa porque a vender fruta conseguiu colocar três filhos na faculdade. É aquela mulher que não se queixa da vida, que a encara com força porque mais ninguém vai fazer isso por ela.”

Lura também acabou por fazer o mesmo e trocar os estudos de Educação Física (queria especializar-se em natação) para seguir a sua vocação, a música, depois de um dueto com Juka, cantor de São Tomé, que a levou a gravar um disco em nome próprio.

Em 2010, lançou um “Best Of” que inclui o tema “Moda Bô”, uma das suas canções mais populares, em dueto com Cesária Évora. “Nos meus concertos faço-lhe sempre uma homenagem e canto ‘Moda Bô’, que foi uma prenda que a vida me deu, a de poder fazer um dueto com Cesária. Quanto mais cantarmos a música dela, mais a mantemos viva.”
O ano passado decidiu fazer-lhe um concerto de homenagem também em Lisboa, no Cinema São Jorge,  só com músicas do seu repertório, a mais maneira de a imortalizar. De Cesária guarda sempre as melhores memórias, principalmente quando se encontravam na estrada. “Passávamos vários meses em tourné e quando havia concertos comuns era uma felicidade enorme, uma galhofa. Encontravamo-nos todos e era como se estivéssemos em Cabo Verde estando na Rússia ou no Canadá.”

No concerto de hoje podemos esperar o clássico “Moda Bô”, mas a ideia é apresentar os temas do novo disco que tem “entusiasmado bastante” a cantora. Como “Herança”, com Naná Vasconcelos, que lhe dá nome, “um tema mais espiritual com uma forte influência na reza dos rabelados [uma comunidade religiosa do interior de Santiago], ou “Ambienti Más Seletu” (de Zezé di Nha Reinalda do grupo Finaçon), que “traça o próprio percurso do funaná, a evolução da sua aceitação, na época colonial tida como música dos pobres, dos negros, música de quintal, até se tornar no género musical mais emblemático e simbolizante da ilha de Santiago”.

No fim do mês, esperam-se mais dois concertos de apresentação do álbum em Santiago e em São Vicente. “São os dois públicos, português e cabo-verdiano, que me dão mais friozinho na barriga”, confessa a cantora. “No fundo porque são as minhas duas casas e, ao contrário do que se possa pensar, estamos preocupados com a opinião dos outros e queremos sempre que tudo corra melhor.”