Foi a notícia do ano para geeks de todo o mundo. Nem mesmo o anúncio de quinta-feira, de que há céus azuis em Plutão, bateu a emoção da semana passada, partilhada por cientistas, astrónomos, engenheiros aeroespaciais e curiosos do espaço. Há água líquida no planeta vizinho e para o mais leigo dos leigos, isto quererá dizer duas coisas: há vida em Marte (ou já houve) e é possível colonizar o planeta vermelho. Será? Já lá vamos…
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As notícias do espaço sucedem-se em catadupa e quem segue a NASA no Instagram sabe que há novidades todos os dias. Não tinham passado nem 48 horas quando soubemos que o Curiosity – o rover que está em Marte e nos tem enviado fotos – não pode ir até aos sítios onde a água escorre, para não contaminar eventuais formas de vida marcianas com bactérias da Terra. As opiniões dividem-se sobre este assunto e já lá voltaremos.
Passado o frenesim inicial, também percebemos que o mais correcto não é dizer que há água líquida em Marte mas sim fortes indícios de que há água líquida em Marte. Em que é que ficamos?
Pedro Machado, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, explica ao i: “As sondas não detectaram directamente cursos de água, mas as consequências da sua existência num tempo, vamos dizer, contemporâneo.” A suspeita de que poderia existir água superficial em Marte é antiga, culpa de umas manchas azuladas em forma de escorrência em encostas. “Veio-se a constatar que essas marcas eram devidas à presença de um mineral, o piroxeno, que está associado à presença de água líquida. A recente descoberta da NASA prende-se com a detecção de sais na forma hidratada (percloratos) que, esses sim, para existirem à superfície sustentam de forma inequívoca a presença de água superficial, mesmo que por pequenos períodos de tempo.”
Okay, okay. Percebemos a subtileza, necessária nos diálogos científicos. Lembramos que a NASA disse que esta água seria salgada. Fará diferença?
“Toda a diferença. As condições de pressão e de temperatura na atmosfera de Marte não são compatíveis com a existência de água no estado líquido à superfície do planeta”, explica Pedro Machado. E é exactamente a presença de grandes quantidades de sais na água que faz baixar a sua temperatura de fusão. “No Inverno é costume espalhar sal nas estradas de altitude para prevenir a formação de uma camada de gelo”, lembra o investigador, explicando que apesar da pressão atmosférica em Marte ser cerca de um centésimo da pressão atmosférica na Terra, “é possível existir água no estado líquido nessas condições dada a sua elevada concentração de sais, como é o caso do perclorato agora descoberto.”
Lição percebida. Se não fosse salgada, a água congelaria devido às temperaturas muito baixas do planeta vermelho: a média são -63oC, mas pode descer até aos -143oC. Já está com frio?
Os marcianos Voltamos ao início e à grande questão. Há marcianos? Pedro Machado não acredita muito, mas não desdenha essa hipótese: “A hipótese de haver vida, a nível microbiano, está em aberto. Nos próximos anos irá haver um incremento das investigações no campo da astrobiologia com o intuito de averiguar essa possibilidade. Um caso concreto é o da missão ExoMars, da Agência Espacial Europeia (ESA).”
Na conferência de imprensa da NASA, Michael Meyer, cientista-chefe do programa de exploração de Marte, partilhou as suas suspeitas: “Hoje há água líquida em Marte. Por causa disso, suspeitamos que é possível haver um ambiente habitável.” O seu colega John Grunsfeld, chefe da equipe científica, relembrou que Marte nem sempre foi o deserto que nos habituámos a conhecer. “Já foi um planeta muito parecido com a Terra, com mares salgados e mornos e lagos de água fresca. Mas algo aconteceu e o planeta perdeu a sua água. Será que já houve vida em Marte e podemos descobrir isso?”
Esta pergunta ainda não tem resposta e a NASA leva muito a sério a protecção planetária, evitando a todo o custo que bactérias da Terra, levadas nos rovers, cheguem a outros planetas. Daí que queiram manter o Curiosity longe da água.
“Parece-me um bocado parvo já que há milhares de milhões de anos que há intercâmbio de meteoritos entre os dois planetas, bactérias incluídas. Foi o caso do meteorito ALH84001”, diz ao i James Burk, da Mars Society. O Allan Hills 84001 é um meteorito de origem marciana (com 4-5 mil milhões de anos) que terá sido lançado ao espaço. Bactérias vaguearam nele até cair na Antárctida onde foi descoberto em 1996.
Então? Afinal há marcianos? “Nós somos os marcianos. Com o passar do tempo, as pessoas nascidas em Marte vão crescer e ser um bocadinho diferente de nós aqui na Terra: fisicamente, psicologicamente e literalmente terão uma nova visão do mundo”, atira David Horn. A visão de um dos directores do Consórcio Internacional do Elevador Espacial – uma estrutura que levará humanos da Terra à Lua de forma mais barata do que um foguetão – é semelhante à do seu conterrâneo americano. E ambos acreditam que na previsão da NASA: em 2030 haverá missões tripuladas a chegar a Marte. A consequência lógica, será o aparecimento de colónias.
As colónias Burk, como dissemos, faz parte da Mars Society, organização que advoga e impulsiona a ida e volta do homem a Marte. Na sua mente, é óbvio que dentro de 30 ou 50 anos teremos uma colónia no planeta vermelho. “Os marcianos serão uma nova raça de humanos, adaptada a uma gravidade menor e a todos os outros aspectos de Marte. Por exemplo, será difícil a alguém nascido em Marte visitar a Terra por causa da diferença de gravidade.”
Colónias humanas em Marte? Demos aqui um salto importante na história. Antes disso, é preciso chegar lá e nem vamos falar das complicações – atmosfera mais fina, temperaturas geladas, radiação fatal, menor gravidade. Antes de resolver esses problemas, temos de lá chegar. E até agora só enviamos robôs – o Pathfinder, o Oportunity e o Curiosity. Não chega?
“Imagine a diferença entre visitar Paris ou enviar um robô com uma câmara. Qual preferia?”, pergunta-nos James Burk. “Só os humanos podem fazer uma investigação mais profunda no local, têm maior mobilidade do que rovers, que têm de ser controlados a partir da Terra.” E controlar sondas a partir da Terra é um problema sério, como conta ao i Tiago Francisco, que sabe bem do que fala. O português trabalha na ESA, na missão Rosetta – a primeira sonda a aterrar num cometa.
“Um dos maiores desafios é a distância. Mesmo à mínima– cerca de 56 milhões de quilómetros – um sinal de rádio demoraria cerca de 3 minutos a chegar ao destino (e 3 minutos de retorno, duplicando o tempo).” Isto impossibilita operações em tempo real, explica o engenheiro informático. “As sondas dependem de automação para operarem ou então as operações têm de ser planeadas com cuidado e atenção. Na distância máxima, que ronda os 400 milhões de quilómetros, o sinal demora num sentido 22 minutos.” E é preciso hora e meia para efectuar um simples ligar/desligar.
Mas não será isso que nos vai impedir de chegar lá. Até Ridley Scott já lá pôs uma tripulação. Ver o filme “Perdidos em Marte” lembra-nos que uma das ideias advogadas – ir e não voltar – não agradará à opinião pública, que não gosta de ver humanos perdidos no espaço.
Entre os defensores do bilhete sem regresso, está Bas Lansdorp, engenheiro holandês que projectou o Mars One. A ideia é simples: deixar lá a tripulação e ir enviando mantimentos é mais barato do que trazê-la de volta. O financiamento viria dos media, que transmitiriam a vida dos astronautas ao estilo reality show. “As pessoas não entendem que o Mars One não é um Big Brother, e é lamentável. Quero uma transmissão ao estilo dos jogos olímpicos: serão jogos de exploração”, disse Lansdorp em 2014.
A outra corrente de pensamento junta Elon Musk– o multimilionário dono da Space X, a única empresa privada que já abasteceu a Estação Espacial Internacional– e Robert Zubrin, o engenheiro aeroespacial fundador da Mars Society. Enquanto Musk vai criando sondas e vaivéns e garantindo que há dinheiro e tecnologia para chegar a Marte, o plano de Zubrin detém-se nos detalhes. E no filme de Ridley Scott encontramos as semelhanças. O lema é “usar os recursos locais, viajar leve e viver da terra.” Da marciana, claro.
O processo Resumindo: primeiro envia-se o veículo que mais tarde trará os astronautas de volta à Terra, o ERV. A viagem leva seis meses e segue também um carregamento de hidrogénio. Com ele, já em Marte, produz-se em 10 meses o combustível necessário para regressar à Terra. 26 meses depois, envia-se a tripulação e o habitat onde viverão durante 18 meses. Uma viagem mais fácil e leve, porque a carga pesada já lá está. Depois de algumas críticas, Zubrin criou uma versão ligeiramente diferente onde inclui um MAV (Mars Ascent Vehicle), que levará os astronautas até à órbita do planeta onde uma nave maior os aguarda para regressar à Terra. Em Marte, seria o MAV a fazer aquilo que inicialmente se previra para o ERV. Este plano tem sido usado como base para uma série de estudos, incluindo da NASA. O custo seria de 55 mil milhões de dólares, encaixáveis no orçamento da agência espacial americana. Volto a perguntar. O que é que falta para irmos até lá?
“A principal barreira é o custo e o apoio das pessoas para torná-lo uma prioridade. Não me parece que as pessoas entendam, pelo menos aqui nos EUA, o retorno fantástico que teríamos com este investimento de longo prazo”, diz David Horn. Já James Burk acredita que ainda há alguns problemas técnicos para resolver: aterrar em segurança grandes cargas, novos fatos para lidar com a radiação e um foguete de regresso. “Não é um problema enorme. Muito antes de a tripulação chegar a Marte, já teríamos lá a nave de retorno para termos certeza de que está a trabalhar bem e, segundo o Mars Direct, também já a fazer o metano necessário para ser usado como combustível.”
Se tudo isto correr bem, se a viagem for mesmo de ida e volta, está na altura de pensar em estabelecer a primeira colónia humana interespacial. Existir água, defende Burk, vai ajudar, por exemplo, a fazer combustível. “Dentro de 100-200 anos as pessoas viverão em Marte e lentamente (ou rapidamente se perguntar ao Elon Musk) estarão a tentar terraformar Marte, através do aquecimento do planeta e do espessamento da atmosfera. Isto poderá ser feito introduzindo líquenes e outras plantas (provavelmente geneticamente modificadas)”, explica.
Terrafomar o planeta é sinónimo de alterar as suas características com o objectivo de o tornar habitável para humanos. E Elon Musk tem um plano para acelerar o processo. Bombardear os pólos gelados de Marte com armas termonucleares, criando um aquecimento global artificial, que tornará as temperaturas mais amenas para o homem. Resta saber se os verdadeiros marcianos vão estender passadeiras vermelhas para nos receber.