Rui Rangel é o juiz comentador. Mais do que os acórdãos que saem do seu gabinete, no Tribunal da Relação de Lisboa, são sobretudo as suas intervenções na televisão que o precedem. Olhado de lado por muitos magistrados por essa forte presença mediática, e sob intenso escrutínio na comunicação social, Rangel parte para o ataque: diz, em declarações ao i, que há “uma campanha” contra ele e que “os juízes não sabem ser membros de um poder soberano”.
“Os juízes são a classe menos confiável em Portugal”, recorda Rangel
Rui Rangel não é um juiz como os outros. É “uma figura única”, atira um magistrado – a expressão tem leitura dupla mas, aqui, é lançada em desfavor do juiz desembargador. São quase 30 anos a aplicar a lei. E nesse percurso, que já vai longo, vai sendo fácil encontrar momentos em que Rangel divergiu frontalmente dos seus pares. É o próprio quem o reconhece.
“Criei, dentro da classe, alguns anticorpos”, admite, reportando-se aos tempos em que, na primeira metade da década de 1990, foi secretário–geral da AssociaçãoSindical de Juízes Portugueses (ASJP). Na altura, foi a sua oposição ao voto por procuração nas decisões da associação que lhe mereceu os primeiros reparos.
Rangel é o homem do palco mediático. Mas garante que essa disponibilidade – que não encontra paralelo noutros magistrados, identificados com o dever de reserva que se lhes exige – serve apenas para tentar aproximar a justiça dos cidadãos: “Não faço parte do grupo de juízes cinzentões que acham que estão fechados numa redoma de vidro.” Mas a maior machadada ainda estaria para vir.
“Tudo isto é uma campanha e, a seu tempo, tudo será explicado”, atira o desembargador
Rangel quer – sempre quis – tornar a justiça menos opaca. Foi por isso que, há alguns anos, organizou uma formação para jornalistas, para trocar por miúdos a linguagem tradicionalmente hermética dos acórdãos. “Isso decorre de uma cultura que o Centro de Estudos Judiciários tinha” para vincar a ideia de que os juízes devem “estar na tal redoma”. “Foi isso”, diz, “que fez com que os juízes ficassem descredibilizados neste país, não foi o dr. Rangel. Os juizes estavam lá em cima, em termos de credibilidade e, se se consultar os índices, hoje, são a classe menos confiável".
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O desembargador defende-se e diz que “quando um juiz discute a justiça, dá o corpo às balas, sabe–se o que ele pensa” e, pelo contrário, “é o serem imunes a tudo que faz perigar” o sistema judiciário português.
As considerações não ficam por aqui. O juiz olha à volta e, analisando a classe da qual faz parte – e de que parece distanciar-se cada vez mais –, diz mesmo que “os juízes, infelizmente, não sabem ser membros de um poder soberano, agem com mentalidade de funcionários públicos”. E, confrontado com as críticas que lhe lançam outros magistrados pelo critério mais largo com que lê esse dever de reserva, responde: “É uma honra, carrego isso como uma medalha de guerra.”
Novas e velhas polémicas Esta semana, Rui Rangel voltou a ser notícia. Desta vez por ter plasmado, numa decisão no âmbito da Operação Marquês, excertos de uma decisão da Relação de Coimbra de 2010. O texto tinha também, percebeu o jornal “Público”, parágrafos inteiros do texto científico de um professor da Universidade Católica de Lisboa.
Ontem, o “Correio da Manhã” (CM) escrevia, na sequência da primeira notícia que, por não ter feito referência explícita à origem dos excertos, o juiz arriscava um processo disciplinar.
Ao i, oConselho Superior da Magistratura (CSM) reitera que “o assunto referido não foi objecto de apreciação”, mas também não esclarece se essa análise será feita – limita-se a acrescentar que, para o efeito, oCSM tem caminho livre para agir, se o entender, e que isso não requer a formalização de qualquer queixa.
Rangel, pelo seu lado, volta a reagir. Não sobre o conteúdo da notícia inicial, que dava conta do plágio (“não faço comentários a faits divers”). Apenas sobre as notícias que o colocam no papel de protagonista e que, refere, têm um objectivo por trás. “Tudo isto tem uma causa. O ‘CM’ tem uma causa e a senhora do ‘Público’” – a jornalista que assina o texto – “também tem uma causa”. Mais: “Tudo isto é uma campanha e, a seu tempo, tudo será explicado.”
Não é a primeira guerra do juiz desembargador com a comunicaçãosocial. Rangel avança mesmo que, neste momento, três jornalistas do “CM” (entre os quais o director) terão o salário penhorado. Tudo porque foram alvo de processos de difamação por terem publicado uma notícia que dava conta de um outro processo em Rui Rangel foi condenado por “dívidas não saldadas” a uma clínica de estética.
O director do “CM”, Octávio Ribeiro, garante que não é verdade.“Ninguém tem salários penhorados” porque “a Cofina prestou uma caução no valor da indemnização em causa”, quase 50 mil euros. O recurso está agora no Supremo Tribunal de Justiça. E, sobre a “campanha”, Ribeiro explica que se limitou a seguir a notícia do “Público”, “que também deve ter uma causa, talvez a causa das notícias”.
Mariana Oliveira, jornalista do “Público” que assinou o artigo sobre o acórdão, rejeita ter objectivos obscuros. “Sou jornalista, faço o meu trabalho e nada me move contra qualquer das partes em causa, noticio o que considero ser notícia.”
Mas será prática habitual que um juiz recorra a excertos de outros textos em acórdãos seus sem que os identifique com clareza? “Não, não é normal”, respondem prontamente os magistrados consultados pelo i.
Nota: Notícia actualizada às 18h40 para incluir citação completa do juiz Rui Rangel