Se houvesse um apito de cada vez que acontece algo de errado no nosso ADN, seríamos seres incrivelmente barulhentos. Estima-se que todos os dias possam ocorrer meio milhão de lesões nas moléculas que contêm a nossa informação genética e estão presente em cada uma das nossas células. Quando as células se dividem e os erros persistem, podem surgir mutações inócuas ou capazes de precipitar o aparecimento de doenças como cancro.
Como os erros estão sempre a acontecer, espontaneamente ou por estarmos expostos ao sol, tabaco e outras agressões do mundo em que vivemos, se não houvesse qualquer forma de reparação incluída no nosso equipamento molecular, a vida seria praticamente impossível. Foi este o raciocínio dos investigadores este ano premiados com o Nobel da Química. Nos últimos 40 anos ,Tomas Lindahl, Paul Modrich e Aziz Sancar descobriram que estamos equipados com um exército de mecânicos a quem escapa muito pouco e que estão sempre a monitorizar as nossas células para garantir que, apesar dos erros, no fim fica tudo bem.
O primeiro a dar passos nesta área foi Lindahl, que além disso é o primeiro sueco – a nacionalidade de Alfred Nobel – a vencer um Nobel da Química em 67 anos. No final dos anos 1960 começou a reflectir sobre a impossibilidade de as células terem qualquer tipo de estabilidade sem que houvesse mecanismos protectores permanentes e em 1974 publicou o primeiro achado. Antes, uma breve explicação. O nosso genoma é formado por blocos chamados nucleótidos e o ADN humano tem qualquer coisa como 3 mil milhões de pares destes blocos em cada célula. Cada uma destas peças tem três componentes, incluindo as chamadas bases, conhecidas como as letras do ADN.
A primeira descoberta de Lindahl foi uma enzima que remove os restos de uma das letras do ADN após sofrer danos e, que de outra forma, iriam emparelhar-se com as letras erradas na próxima divisão celular. Nos anos seguintes, o investigador viria a estudar a fundo aquilo que hoje é conhecido como um dos mecanismos de reparação de ADN: a excisão de bases. Basicamente, mapeou enzimas que vão cortar os segmentos errados de bases e descreveu o processo da sua destruição, para que não gerem problemas nas gerações seguintes de células.
Na mesma linha, e pela mesma altura, começa a interessar-se pelo assunto Aziz Sancar, o primeiro cientista de origem turca a ser agraciado com um Nobel. Sancar dedicou-se a um problema específico: como são reparados os danos provocados pela exposição à luz ultravioleta, dos mais comuns no nosso dia-a-dia e que, em última instância, podem levar ao aparecimento de cancro da pele quando se acumulam ao longo de anos. Radicado nos EUA e depois de ter dificuldades em ser aceite como aluno de pós-doutoramento, empregou-se como técnico de laboratório em Yale. Com base no ADN de bactérias, viria a detalhar dois mecanismos de reparação semelhantes aos de Lindahl, mas em que em vez de serem cortadas bases eram cortados fragmentos de nucleótidos – outro método de reparação por excisão. Os trabalhos foram publicados em 1983.
Paul Modrich, que ontem recebeu a notícia de férias numa cabana no meio da floresta em New Hampshire, descobriu um terceiro método: uma correcção automática que acontece quando, por algum motivo espontâneo, as letras surgem mal emparelhadas. Hoje ainda não se sabe como é que o organismo identifica o erro mas este tipo de reparação foi detalhada pelo investigador norte-americano, e professor na Universidade Duke, numa publicação em 1989.
Além de permitirem a sobrevivência dos seres vivos, o Nobel e os laureados salientaram ontem como estes sistemas são uma das apostas para combater melhor doenças como o cancro. É que se erros por corrigir aumentam o risco de doenças cancerígenas, as células malignas são difíceis de matar precisamente porque se aproveitam destes mecanismos de reparação para se manter vivas. Conseguir activá-los e desligá-los no momento certo e assim vencer o cancro é por isso o desafio que se segue.
CITAÇÕES
“Os nossos genomas estão continuamente sujeitos a milhões de mutações que danificam o ADN mas o cancro é relativamente raro por causa destes mecanismos de reparação e vigilância.”
Malcolm Alison
investigador na Queen Mary University of London
“Muitos medicamentos oncológicos danificam o ADN e as células conseguirem ou não reparar esses danos influencia a eficácia dos tratamentos.”
Aziz Sancar
laureado, professir de bioquímica e biofísica na universidade da carolina do norte
“Queremos perceber os mecanismos de reparação de forma a prevenir, por exemplo, que as células cancerígenas reparem o seu ADN, por exemplo quando as expomos a radioterapia”
Tomas Lindahl
laureado, líder de grupo emérito no instituto francis crick
“A construção e desconstrução destes laços [entre as moléculas] é química – num contexto biológico”
Diane Grob Schmidt
presidente da Sociedade Americana de Química, em resposta a críticas de que estes vencedores encaixariam melhor no Nobel da Medicina