O estranho mundo de Charlie Kaufman

O estranho mundo de Charlie Kaufman


Considerado um dos génios do cinema americano, Charlie Kaufman abre a sua mente e conta como nasceu  Anomalisa”. Um filme de animação onde não falta uma cena de sexo hiper-realista.


Quando, em 1999, a revista “Variety” incluiu Charlie Kaufman na lista dos “dez argumentistas a seguir”, o seu nome era o único que não vinha acompanhado por uma fotografia. Kaufman não gosta da exposição mediática e possui uma personalidade peculiar. Em 2002 creditou como co-autor do guião de “Inadaptado” o seu inexistente irmão gémeo, Donald Kaufman. Em consequência disso, pela primeira vez na história da Academia, uma personagem fictícia foi nomeada para um Óscar. Nascido em Nova Iorque em 1958, numa família de ascendência judaica, em criança Charlie preferia frequentar cursos de teatro a empenhar-se nos estudos e, em vez de ir para a rua brincar com os outros miúdos, ficava em casa a fazer peças de teatro ou a criar pequenos filmes caseiros.

Começou a fazer sketches humorísticos para a revista “National Lampoon’s” e acabou por mudar-se para Los Angeles para enveredar por uma carreira de guionista. A saída do anonimato deu-se com o argumento de “Queres Ser John Malkovich?”, e o seu talento confirmou-se em “O Despertar da Mente”. A sua mais recente obra, “Anomalisa”, é um filme em stop motion (a mesma técnica de “Ovelha Choné”) em que bonecos de palmo e meio dão vida a uma peça de teatro que Charlie escreveu há dez anos. “Anomalisa”, que se estreia nos EUA a 30 de Dezembro, conta a história de um guru da auto-ajuda que se move num mundo em que todos têm o mesmo rosto e a mesma voz. Mas um dia descobre uma mulher com um rosto e uma voz distintos.

“Anomalisa” demorou dez anos a concretizar. O que mudou ao longo desse período?
Já nem me lembro como era há dez anos… Mas acho que não há nada com que não me identifique.

Realizar algo escrito por si dá-lhe mais controlo?
De certa forma, sim. Mas as minhas colaborações com o Spike Jonze (“Queres Ser John Malkovich?”) ou o Michel Gondry (“O Despertar da Mente”) foram muito reais. Respeito o trabalho deles, como eles respeitam o meu.

No entanto, percebe-se que a escrita é o seu meio…
Sim, claro. Mas escrever é muito difícil, é um trabalho solitário que requer muita autodisciplina. Sou uma pessoa visual, gosto de realizar e de trabalhar com actores.

Então porque decidiu fazer este filme em animação?
O filme partiu de uma peça em que os actores estavam em palco a ler o guião – a ideia era que tudo fosse criado na cabeça do público.

Pareceu-lhe que este processo funcionaria melhor como animação stop motion?
A ideia partiu do Duke [Johnson, co-realizador]. Ele veio ter comigo e disse que queria fazer o filme como uma animação. Inicialmente fiquei reticente porque já existia num formato que me agradava. Mas acabei por dizer: “Se conseguirem o dinheiro, podem fazê-lo.” À medida que o projecto avançava, ia ficando claro que era a melhor forma. O facto de ser em animação dá-lhe um tom onírico e surreal que acaba por servir a história.

A ideia desenvolveu-se através de uma empresa de crowdfunding. Como?
Este filme nunca poderia ter sido feito de um modo convencional. Nunca teríamos arranjado financiamento. O que conseguimos foi o dinheiro inicial, através da empresa Kickstart, e obter a atenção suficiente para financiar o resto do filme.

Quanto tempo demorou a produção?
Ao todo, três anos. Mas não tínhamos mais nada para fazer… [risos] Na verdade foi um período muito complicado em que algumas pessoas ficaram frustradas, pois não sabíamos se algum dia o projecto estaria concluído. Ficámos sem dinheiro mais de uma vez. Foi um pesadelo. 

Há uma cena de sexo explícito, muito realista.
Não queríamos que fosse um gag. Queríamos que fosse uma manifestação do que acontece quando as personagens interagem umas com as outras. Só essa cena demorou seis meses a filmar. Foi tudo executado de forma muito cautelosa. Na peça existiam apenas actores que liam em palco. O David e a Jennifer estavam frente a frente a fazer gemidos. Era divertido. O público via apenas dois actores a gemer, mas bem separados um do outro. Aqui tínhamos de ser específicos. 

Tinham um limite acerca do que podiam mostrar?
Havia uma erecção opcional… Queríamos ser realistas, mas não que o filme fosse interdito a menores de 18. Não nos interessava chocar.

Disse numa entrevista que a vida é a sua inspiração.
Não tenho muita inspiração. Trabalho muito para me inspirar. Quando se trabalha de forma independente não há horário, há sempre tempo de trabalho. Quando estou a desenvolver uma ideia trabalho, por vezes, anos sem parar.

Enquanto realizador, diz não gostar de se explicar.
Tenho dito sempre a mesma coisa. Damos alguma coisa ao mundo e queremos que o público responda. Quando fazemos um filme, não damos uma explicação. Fazemos o filme e queremos que as pessoas tenham as suas reacções. No fundo, ou funciona ou não funciona.

Qual foi o maior desafio de animar os bonecos?
Este filme é diferente daquilo que os animadores costumam fazer. Normalmente existe um movimento mais teatral, enquanto aqui são detalhes de expressão muito subtis. O maior boneco não ultrapassa 30 cm, o que significa que os dedos ou os olhos são mínimos, por isso têm de ser movidos com um alfinete. 

O filme contém uma simpática referência ao português. Porquê? 
Porque adoro o português. É uma língua muito bonita. Apesar de falar melhor português do Brasil.