Refugiados. O desejo de ser sírio ou curdo ou quanto vale um passaporte

Refugiados. O desejo de ser sírio ou curdo ou quanto vale um passaporte


Os jornalistas já mudaram de história, mas a história continua em Belgrado. Por dia saem 55 autocarros com 75 refugiados cada rumo à Croácia, sem que ninguém saiba se amanhã o país não fecha também a fronteira.


“O que alguns fazem agora é vir com tradutores que conhecem o sotaque da região de onde eles dizem que são. Se fores um iraquiano do Curdistão, recebes asilo. Mas se fores um iraquiano de Bagdade, as coisas não são tão fáceis.” Hassan é sérvio, filho de imigrantes árabes. É um de dez tradutores de farsi, urdu e árabe que se prontificaram a ajudar quando os refugiados começaram a chegar à capital sérvia. Podia ser ele a entrar assustado e envergonhado no Centro de Asilo de Belgrado, mas está lá dentro ao balcão a oferecer barrinhas de chocolate de boas-vindas. 

Voluntários como Hassan e as autoridades sérvias começaram a organizar-se aqui no início de Agosto para dar apoio aos que partiam a pé da Grécia pela rota dos Balcãs, rumo à Alemanha. A Hungria ainda não tinha erguido a barreira na fronteira com a Sérvia, a Croácia ainda não estava a trocar ameaças e acusações com a Sérvia. Só a Sérvia era, como continua a ser, o ponto incontornável no caminho cada vez mais sinuoso para a paz.

Eram quase todos sírios os que chegavam então. Agora são sobretudo afegãos e curdos do Iraque e da Síria, mais uns quantos iranianos, paquistaneses e alguns ucranianos, diz Hassan. Muitos não são curdos nem sírios mas dizem ser. Tudo vale para fazerem parte do exclusivo grupo que tem direito a acolhimento na União Europeia sob as quotas definidas há um mês. A massa de jornalistas que, há algumas semanas, se concentrava na baixa de Belgrado, onde os refugiados acampam, já partiu para outras bandas. Nas notícias já só se fala dos bombardeamentos da Rússia na Síria, do ataque inadvertido dos EUA a um hospital dos Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão há poucos dias. 

Mas o caos humano continua a reinar aqui. Há quatro dias, foi lançada a campanha #FindAzam, depois de Azam Aldaham, um menino sírio de cinco anos, ter sido acolhido em Savamala, a baixa da cidade, perto do Centro de Asilo, com um homem que dizia ser seu pai. Tinha o queixo fracturado, chorava sem parar. Quando a ambulância chegou, Azam tinha desaparecido. Ninguém sabe o que fazer para o encontrar. Chegou entre as cerca de 200 pessoas que, por dia, aterram ao lado da central de autocarros e da estação de comboios. As caras mudam a cada dia e ninguém sabe onde pára Azam. Os refugiados têm 72 horas para sair da Sérvia ou para pedir asilo. Ninguém quer ficar e por isso partem sem olhar para trás.

Ir sem voltar Nem duzentos metros separam o Centro de Asilo do que em tempos foi o Estado-Maior da Força Aérea sérvia, hoje um edifício sem tecto nem paredes nem janelas, só o esqueleto do que um dia foi. Uma ferida aberta dos bombardeamentos da NATO em 1999 contra o então centro da Jugoslávia, a primeira vez que a aliança lançou uma ofensiva sem o aval do Conselho de Segurança da ONU.

A imagem podia ser de Damasco ou Tikrit, mas está aqui, no coração da Europa, a poucos passos da loja cedida pela câmara para se criar um dos centros de gestão da crise. Os que ali vão nem chegam a ver aquele fantasma de cimento e ferro. Há uma semana, entravam no centro de chinelos ou descalços enquanto a terra por baixo das tendas se transformava em lama. O Inverno está a chegar e pedem meias, sapatos, calças e mantas para enfrentarem o que aí vem. Há uma semana chegavam 200 pessoas por dia a este centro, esta semana a média diária é de 40, explica Maja a desculpar-se pelo cansaço. Está no centro desde as 9h da manhã de sábado, são 16h de domingo. A maioria dos refugiados já nem vem aqui; fica-se pelos parques de Savamala e segue caminho o mais rápido possível.

Se Belgrado é o eixo que separa a Europa de Leste da Ocidental, Savamala é a artéria mais central de todas. Em tempos um dos bairros mais populosos da capital sérvia, ao longo do rio Sava, esteve ao abandono nas últimas décadas até artistas começarem a ocupar prédios ao abandono. A Mikser House, a LX Factory de Belgrado, é o centro de operações para reabilitar a zona ribeirinha. Mas até agora tem servido mais para gerir crises. Em 2014, foi essencial para organizar os apoios às centenas de milhares de habitantes afectados pelas cheias na cidade. Um ano depois, é o ponto central de acolhimento de refugiados, que aqui tomam banho e têm consultas médicas enquanto aguardam os autocarros que os levarão à fronteira com a Croácia.

Por dia, saem 55 autocarros com uma média de 75 pessoas cada. Os bilhetes custam 10 euros. As viagens são organizadas por empresas privadas que viram uma oportunidade de negócio na enchente humana, cobram o preço normal mas fazem o triplo ou o quádruplo das viagens que costumavam fazer. Partem para Šid (lê-se Shid), na fronteira com a Croácia, enquanto o mais jovem Estado-membro da UE pondera o que fazer se a Hungria cumprir a promessa de fechar mais essa fronteira. Os refugiados que entram nos autocarros não sabem disso. Mal falam inglês e com o pouco que sabem tentam explicar porque vieram. 

Sem olhar para trás “Irão não bom”, diz-nos uma mulher afegã. É de Kandahar, está sentada num banco de um dos parques de Savamala. Ao seu lado a filha mais velha, não terá mais que quatro anos, bebe leite do biberão deitada no banco de pedra. Ri-se muito, enquanto um punhado de adolescentes joga à bola ali perto à espera do próximo autocarro. O marido tem a filha mais nova ao colo, uma bebé sorridente que fixa a lente da máquina sem medo. Tenta explicar-nos o que a mulher não consegue. “Irão só 45 mas não bom.” A aldeia da província afegã de onde fugiram fica a 45 quilómetros da fronteira com o Irão, mas fugir das bombas para o país vizinho não era opção. Perguntam se “Croácia bom”. Sabem que na Hungria já não vão ter sorte, mas não desistem de chegar à Alemanha. Levantam-se de rompante a pedir desculpa, enquanto enrolam as filhas em mantas, correm para a estrada com as mochilas às costas. Vão partir, as filhas dão-lhes prioridade.

A assistente de bordo da companhia OPAČIĆ Tours, que se gaba ao i de ser o patrão, é quem escolhe quem entra e quem fica de fora. O casal de Kandahar já está lá dentro a sorrir e a dizer-nos adeus. Jimmy, outro afegão, de 22 anos, lava a cara com a água do camião-cisterna feito casa-de-banho, à espera de saber se embarca. Quer chegar à Alemanha porque o tio e o primo vivem lá há 16 anos. Gostava de poder continuar os estudos e está aliviado porque, desta vez, vai ver a paisagem a caminho do destino. “No sítio onde viajei para cá não via nada.” Há lugar para ele no autocarro. Vão seguir para a Croácia e ainda não sabem que a Alemanha já alterou o discurso. Não sabem que Sigmar Gabriel agora lhes chama ingratos porque “pensam que podem decidir por si próprios” e que até se dão ao luxo de dizer que “não gostam da comida”. Que o país diz estar a chegar ao limite da sua capacidade – ainda que há um mês anunciasse que podia acolher quase um milhão de pessoas por ano nos próximos anos, ainda que o Deutsche Bank já reveja em alta as previsões de crescimento da economia alemã graças aos refugiados. Mas sabem que continuam numa corrida contra o tempo e que amanhã a Croácia pode já ter fechado as passagens. Por isso partem sem olhar para trás. Dentro do autocarro todos sorriem ao novo dia. Ninguém sabe ainda onde está Azam.

Nota: Os jornalistas viajam no âmbito do projecto "Aquele Outro Mundo que é o Mundo", promovido pela ACEP, CEsA, seisXX e Coolpolitics, com o apoio do Instituto Camões e da Fundação Gulbenkian