Quando a cura se esconde num campo de golfe ou na sabedoria chinesa

Quando a cura se esconde num campo de golfe ou na sabedoria chinesa


Descobertas em que a natureza foi a chave para resolver problemas de saúde que afectam milhões em destaque no Nobel da Medicina de 2015.


“As pessoas pensam que é por ser adepto de golfe, mas na realidade é porque estou próximo do campo, muito próximo. E no campo de golfe pode haver areia e relva mas também há madeira. E na verdade descobrimos o microorganismo perto de madeira.”

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Foi desta forma que Satoshi Õmura, um dos três vencedores do Prémio Nobel da Medicina, falou ontem do lado caricato da descoberta que lhe valeu a distinção: foi no território dos buracos, tees e caddies na cidade japonesa de Ito que o microbiologista recolheu em 1974 amostras de bactérias que viriam a revelar-se decisivas no combate a algumas das doenças parasitárias com maior impacto nos países em desenvolvimento, a elefantíase e oncocercose (também chamada cegueira do rio). 

Õmura, junto com o irlandês William C. Campbell, receberam metade do Nobel da Medicina pela classe de medicamentos que acabou por resultar das propriedades descobertas nas bactérias do campo do golfe: a avermectina.

A outra metade do prémio foi para uma descoberta em que a natureza foi também a chave. A chinesa Youyou Tou é a terceira galardoada com o Nobel da Medicina de 2015 pela descoberta e desenvolvimento da molécula artemisinina, ainda hoje o medicamento mais eficaz contra a malária.

Nobel para a medicina chinesa A história de Youyou Tou também é singular, dado que é a primeira vez na história que o Instituto Karolinska – responsável pela atribuição do Nobel da Medicina – premeia um contributo da medicina tradicional chinesa. 

Youyou, de 85 anos, escreveu em 2011 um artigo na revista “Nature” onde conta como deu de caras com esta capacidade de uma planta usada há milénios na medicina tradicional chinesa e que dá pelo nome de qinghao – um arbusto com umas florzinhas amarelas baptizado de Artemisia annua.

Ao contrário do que se poderia pensar, a jovem Youyou Tu começou por formar-se em farmácia com um currículo ocidental e só na década de 1960 fez uma formaça de dois anos e meio em medicina tradicional chinesa. De repente, descobriu o “tesouro” dos seus antepassados e a “beleza” e pensamento filosófico de encarar o ser humano como um todo.

Anos mais tarde, quando se viu envolvida num projecto nacional de combate à malária que então começava a revelar-se resistente aos tratamentos disponíveis, decidiu voltar ao básico. 

Durante a primeira fase do projecto, investigaram mais de 2000 ervas e identificaram 640 que poderiam ter alguma propriedade antimalárica. Destas, 380 foram depois avaliadas em modelos animais e o extracto da Artemisia annua revelou-se o mais promissor, ao inibir o crescimento e proliferação do parasita da malária, que faz com que a infecção se prolongue. 

Ainda assim, os resultados eram ténues, mas aí Youyou Tu encontrou uma pista num livro de medicina tradicional chinesa datado do século IV: “O Manual de prescrições para emergências”, de Ge Hong. Neste podia ler-se que o qinghao aliviava os sintomas que costumam surgir na malária (febre, calafrios e dores) mas que devia ser preparado da seguinte forma: depois de pôr a planta de molho em dois litros de água, espremer o seu sumo e bebê-lo.

Foi então que a investigadora percebeu que os métodos da ciência convencional poderiam explicar por que motivo o sucesso não era ainda o melhor: para obter o extracto, usavam o típico processo de aquecimento.

Tal como na investigação que levou ao isolamento da evermectina a partir da actividade de bactérias, isolar as propriedades deste sumo de qinghao exigiu trabalho de laboratório e ensaios clínicos, bem como a colaboração da indústria farmacêutica.

Ao início, o cepticismo era tanto que teve de ser Youyou a beber o sumo, conta no artigo da “Nature.” Hoje a artemisinina salva mais de 100 mil pessoas por ano. Em entrevista ao site dos prémios Nobel, William C. Campbell sublinhou o facto de, apesar da evolução tecnológica, não se poder subestimar o contributo da natureza para a medicina.“Acho que um dos nossos maiores erros é esta dose de arrogância de pensar que conseguimos criar moléculas tão bem como a natureza”, disse.