A série “A Pedra e a Folha” começou com “A Batalha das Lágrimas”, romance que se situa historicamente entre 1870 e 1910. Seguiram-se ”Crónicas Timorenses” e, agora, “Os Timorenses (1973-1980)”. Mas antes de nos debruçarmos sobre o livro e a trilogia para dar início à entrevista, a autora, Joana Ruas, antecipa-se para nos dizer que aquilo que era uma trilogia deixará de o ser. Há um quarto livro a caminho, como prontamente nos explica: “Estou a trabalhar na fase que vai desde 1980 a 2002, que foi a restauração da independência e que é um período igualmente conturbado, porque dá-se uma estratégia nova, depois da derrota que sofreram perante as forças invasoras. Tudo isso vai ser outro processo muito complexo.” Aproveitemos, pois, a deixa.
No período que o novo livro abarca aconteceu o massacre de Santa Cruz. Os portugueses emocionaram-se com as imagens dessa tragédia. Mas com os seus livros e, em particular, “Os Timorenses”, apercebemo-nos de que conhecemos muito pouco dessa terra. O que nos tem escapado?
Houve um defeito da nossa política, da monarquia até à república, que foi permanecermos na ignorância daqueles povos, o que não aconteceu, por exemplo, com o imperialismo francês ou inglês. Eles sempre tiveram a preocupação de aprofundar a etnologia. Espoliaram esses povos da sua própria história, mas os cientistas, os historiadores foram sempre estudando-os. E nós não. Nós convencemo-nos de que era melhor assim. Temos o vício da ignorância. Fiz a história de 100 anos. Vai desde 1865, que é quando se dá uma grande evolução nas lutas coloniais, e depois continua, no quarto volume, até 2002.
E porque decidiu começar nessa data?
Não decidi, fui obrigada a isso. Eu também era ignorante. O antigo regime não nos deu ferramentas para entender aqueles povos e, quando comecei a interessar–me pela causa timorense, comecei pela actualidade.Quando chego à actualidade dou-me conta de que havia para trás muitos factos que não conhecia. Então iniciei uma investigação que não está feita. Tive de andar à procura da documentação e foi assim que conseguir pôr de pé “A Batalha das Lágrimas”, porque encontrei num boletim militar o nome de uma mulher. “Está aqui uma mulher que é uma coronela! Então vamos ver o que aconteceu a esta mulher.” Começo à procura na Sociedade de Geografia, na Biblioteca Nacional, no Arquivo Ultramarino. Corri tudo e fui encontrando pedaços soltos. E comecei a perceber o contexto e a história. Saltei para trás para tentar compreender a actualidade da nossa época.
Mas esse salto para trás fixa-se nessa data porque não conseguiu recuar ainda mais?
Não fui mais longe porque, a partir da altura em que se deixa de falar da chegada dos portugueses, ou seja, até ao século XVII, há um hiato muito grande, há muita falta de documentação. Era muito interessante que outras pessoas pegassem no assunto. Sobretudo se fossem timorenses. Mas é difícil porque as fontes estão espalhadas. Para este último volume tive de ir a Timor, de confrontar a informação com o contraditório de pessoas que sobreviveram à guerra. E agora vou ter de fazer a mesma coisa.
Há então duas fases de recolha.
Nos dois volumes anteriores, Timor estava fechado – com pessoas de outras civilizações, mas integrados num contexto. Neste é completamente diferente. Tive de estudar a cultura indonésia, o exército indonésio, a história indonésia, dos portugueses que lá estavam já numa fase de evolução, os australianos – que infringiram os códigos para denunciar aquele genocídio… Eu estava confrontada com uma série de culturas num contexto histórico definido num território tão pequeno. Tive de me valer das fontes australianas, americanas, indonésias. E, depois, do testemunho oral das pessoas que conheci.
Como surgiu o seu interesse por Timor–Leste?
Estive em Timor nos anos 60, 70. Era muito nova e fui para uma zona muito isolada onde, em 1959, tinha havido uma grande revolução. Estava sozinha, mas a minha infância foi passada em Angola e isso deu–me a capacidade de lidar com pessoas diferentes. E comecei a dar-me com as pessoas de lá e eles começaram a achar esse contacto interessante. Então levavam-me pertences, ofereceram-me um cavalo para poder deslocar-me. Foram eles que me ajudaram enquanto lá estive. E, portanto, criei amizades.
E eram só timorenses, essas pessoas?
Timorenses e chineses. Tanto que em todos os livros tenho sempre a preocupação de ter personagens chinesas.
Uma presença que muitos de nós ignoramos.
Exactamente. Para a personagem do Yen deste “Os Timorenses”, tive de estudar muito da literatura chinesa. E é uma literatura fascinante.
Tem variado os géneros dentro da trilogia. O segundo volume, “Crónicas Timorenses”, são contos, porquê?
No primeiro tinha de ser um romance porque havia uma intriga e uma narrativa um pouco linear. A história não se movia com rupturas. Quando deixo “A Batalha das Lágrimas”, em 1912, começa um período completamente diferente em Timor. A maior parte da geração anterior já não está. Depois dá-se a invasão japonesa, na Segunda Guerra Mundial, que é outra ruptura, e assim sucessivamente, nos anos 60 depois da revolta de 59. Por isso, estruturei esse período em contos.
Com o quarto volume fica a faltar a parte da independência propriamente dita. Vai avançar para um quinto livro?
Não, porque preciso de descansar, de me renovar. Deixei muitos trabalhos de poesia e de ficção porque isto é absorvente. Acabando este livro, pretendo também voltar às minhas investigações literárias.
Quanto tempo demorou todo este processo, da investigação à escrita?
É um trabalho de 20 anos. Fui fazendo, tinha de interromper muitas vezes porque não tinha apoios. Fiz tudo sozinha.
Muito do que aprendemos sobre as ex--colónias portuguesas foi através da literatura.
Pois, a literatura prestou um grande serviço à história. Não é por acaso que já o Alexandre Herculano dizia que se encontrava a história nos livros dos escritores e não dos historiadores, porque estes estão limitados pelos cânones e, portanto, não avançam.
E a ficção num romance histórico serve para dar essa continuidade? Para garantir que se avança sem a limitação dos cânones?
Eu tinha um esqueleto que eram os acontecimentos, mas a literatura não é uma sequência de factos. Não podia deixar de falar das massas populares, porque era realmente um movimento que integrava não só os líderes mas todo o povo timorense. O próprio povo foi herói. Fizeram tudo o que era possível contra ele, mas ele resistiu, resistiu. Não podia deixar de falar disso, portanto tinha de arranjar personagens para dar esse protagonismo ao povo, construindo-as a partir dos testemunhos que fui recolhendo.
Cresceu em Angola, como disse. Mais tarde esteve na Guiné-Bissau. Diz até numa entrevista que essa ida foi um regresso à infância, porquê?
Fui à Guiné para encontrar umas amigas de infância. Vivi numa época em que havia uma grande perseguição às pessoas de oposição, e os meus pais tinham amigos da oposição. Um desses amigos era guineense e estava exilado em Angola. Morreu em circunstâncias muito estranhas. E as filhas, as minhas amigas, desapareceram do meu universo. E vivi sempre com aquela mágoa de não saber dessas pessoas. Quando se deu o 25 de Abril, comecei a procurar e disseram-me que elas estavam na Guiné. E fui lá.
Entretanto, aí acompanhou a independência da ex-colónia e o PAIGC.
Sim, o PAIGC depois convidou-me para ir para o jornal fazer a página de cultura e literatura africana.
E que diferenças encontrou num movimento como o PAIGC e organizações de libertação timorense, como as FALINTIL e a FRETILIN?
Foi diferente porque eles tinham contextos históricos diferentes. Os timorenses dentro do contexto das antigas colónias são um caso muito particular, tão particular que, quando se deu o processo de descolonização, uma das coisas que o governador que estava em Timor disse foi: “Vocês não tiveram luta de libertação como tiveram os angolanos.” Isso não era verdade, sempre houve revoltas. Só que eles tinham de parar para se refazer. E os africanos também tinham os países africanos que já estavam independentes à volta. Os timorenses não, estavam confinados naquele canto.
A independência de Timor-Leste já tem uma década. Como olha para esta fase do país?
Com muita esperança. São pessoas extraordinárias. A última vez que estive em Timor fiquei espantada quando fui para o interior e vi as crianças com as saquinhas a ir para a escola. São pessoas por quem tenho um grande respeito e admiração.
A relação com Portugal, como a vê?
Acho que é boa. Depois de uma série de contradições, lá está, devido à ignorância dos políticos porque, com o 25 de Abril, viram-se com uma série de conflitos e de problemas que não conheciam. Cometeram erros, mas foram, digamos, involuntários, não foram erros históricos, devido ao contexto da herança que tinham recebido. Mas repare, eu não sei tétum, mas leio perfeitamente, 70% dos vocábulos são em português. A língua, os costumes, a maneira de estar… são nossos irmãos. Portugal, eles consideram sempre como se fosse a sua segunda pátria, não há dúvidas nesse aspecto.