Gessos Maceiro. Dois séculos de arte que chegam ao fim

Gessos Maceiro. Dois séculos de arte que chegam ao fim


O ateliê encerra hoje a sua actividade. Com ele perde-se um ciclo de conhecimento técnico e um património que fica por classificar


Foram 225 anos de actividade, garantindo a preservação e restauro de peças em gesso que ornamentam alguns dos mais emblemáticos edifícios de Lisboa, de palácios a igrejas, passando por grandes entidades públicas e privadas. A vida e a história do Atelier Gessos Maceiro termina hoje e o futuro do vasto espólio que acumulou é incerto. Peças originais, moldes, alguns deles que se crê serem do século XVIII e únicos neste tipo de ateliê, a nível nacional, bem como gravuras, documentos e livros sobre decoração de interiores e arquitectura que chegam a recuar aos séculos XVI e XVIII. Tudo isto faz parte do acervo do espaço, gerido por João–Paulo Mourato e a mulher, Maria José Sousa, formada em Belas-Artes e a quem foi confiado por uma tia, em 1993, o destino desta empresa familiar fundada em 1790. 

Na altura em que Maria José Sousa pegou no ateliê, este ainda funcionava no número 203 da Avenida da Liberdade, que ocupou cerca de 70 anos, de 1930 a 2002. Antes disso passou por várias fases e locais da cidade de Lisboa, encontrando no número 74A da Rua Luciano Cordeiro as suas actuais e derradeiras instalações. 

Em vésperas de a empresa encerrar a sua actividade, o casal trabalha normalmente como se fosse outro dia qualquer, embora João-Paulo Mourato confesse que o anúncio do encerramento aos clientes levou a mais solicitações que o habitual. Quando se juntou à mulher na gerência do Gessos Maceiro, a sua tarefa foi sobretudo a de gerir o negócio e o espólio do ateliê, peças que, para o engenheiro, “merecem todo o respeito”, tal como outros projectos artísticos. Mas quando o casal se ocupou da empresa deparou-se com milhares de peças, entre as quais matrizes e elementos decorativos dos séculos XVIII, XIX e XX e dos quais já não existem moldes, e centenas de documentos por organizar e identificar. “O meu trabalho foi catalogar e fotografar. Fez-se como numa biblioteca, por prateleiras e referências.O mais difícil foi atribuir os preços”, confessa, explicando que muitos foram calculados com base no valor da mão-de-obra e tempo necessário para se fazer os artigos. 

Escola

O saber-fazer também fez do ateliê uma referência, com as técnicas e os métodos de trabalhar o gesso a atravessarem gerações. Até ao início do século XX, o fabrico de moldes baseava-se na utilização de produtos naturais, como a cera de abelha e a gelatina de osso, o que contribuiu para que tivessem chegado até hoje centenas de matrizes e originais dos elementos decorativos que ornamentavam os salões de palácios, casas nobres ou igrejas. Ao longo dos anos, o ateliê foi, por isso, também um espaço de aprendizagem para os profissionais desta área, ensinando, a par das técnicas actuais, os métodos tradicionais de trabalhar o gesso ornamental e a execução de moldes.

A tradição faz com que, apesar de servirem projectos contemporâneos, sejam particularmente procurados quando se trata de incorporar ornamentações clássicas na decoração. “Quando algum arquitecto ou especialista quer refazer ornamentos, vem aqui.” Mas não é apenas para os profissionais da construção e da decoração de interiores, como arquitectos e decoradores, que trabalham. Também os particulares procuram os seus serviços e peças, sobretudo sistemas para iluminação – como candeeiros de tecto, apliques de parede e sancas de luz indirecta – e elementos para decoração ou restauro, de colunas a capitéis, passando por pequenas estatuetas. Peças que tanto podem ser modelos originais como recriações, mas com acabamentos realizados à mão. “Temos 800 moldes diferentes de sancas”, exemplifica João-Paulo Mourato. Tudo isso faz com que este seja um trabalho demorado e dispendioso. Alguns trabalhadores foram abrindo os seus próprios negócios, mantendo colaborações com o ateliê, e nos últimos anos a empresa sobreviveu graças ao casal, que foi recorrendo a prestação de serviços para dar resposta às encomendas. 

FIM

Por impossibilidade de continuarem à frente do ateliê e por não haver quem, na família, pudesse assegurar a sua continuidade, desde 2006 que João-Paulo Mourato e Maria José Sousa abordaram diversas instituições para que o património da empresa não se perdesse. A Câmara Municipal de Lisboa, a Fundação Calouste Gulbenkian, os Ministério e Secretaria de Estado da Cultura, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva foram as entidades contactadas. O ateliê chegou a apresentar a algumas delas uma proposta de venda que incluía a actividade e todo o espólio da empresa por 300 mil euros, com a oferta gratuita de 200 horas de formação aos futuros profissionais. Mas a proposta não foi acolhida. A falta ou indefinição de datação dos documentos e dos moldes, nuns casos, ou de verba, noutros, ditou o desinteresse numa possível aquisição do ateliê ou do seu património, não obstante o reconhecimento de que o ofício não deveria desaparecer. João-Paulo Mourato lamenta que não lhe tivessem feito uma avaliação especializada de parte desse espólio para determinar a sua origem e datas, nem contrapropostas. “O dinheiro nem era o mais importante. O que tínhamos de ter era um projecto, a partir daí podíamos ir tentar arranjar parceiros”, explica. O casal decidiu então proceder à venda diferenciada das peças e outros bens existentes no ateliê. Entre estes estão edições de livros alemães e franceses de arquitectura e ornamentação que apresentam como raras, com datas de 1709 e 1714, ou um volume de “Os Quatro Livros de Arquitectura”, de Andrea Palladio, datado de 1570, além de desenhos originais portugueses, do século XIX, feitos a lápis.

VENDA
A partir de amanhã, o espólio do ateliê será alienado, peça a peça, mediante o interesse dos compradores, nacionais ou estrangeiros. Estarão à venda – através de contacto com o ateliê e marcação prévia – documentos, livros e matrizes, moldes ou peças em stock, com desconto.