A caridade não tem limites


Acha verdadeiramente Pedro Passos Coelho que o direito fundamental de acesso à justiça se deve materializar através de subscrições públicas para pagar advogados e taxas judiciais? 


O primeiro-ministro achou por bem, a meio de uma acção partidária, atalhar o queixume de um cidadão que, segundo o próprio, teria “perdido tudo” no colapso do Grupo Espírito Santo com a ideia de que seria o primeiro proponente de uma “subscrição pública” para financiar o patrocínio judiciário dos queixosos do BES. Independentemente da qualidade em que estivesse a falar, fosse a de primeiro--ministro, fosse a de presidente de um partido candidato às eleições, não deixa de ser bizarro e assustador ouvir este tipo de disponibilidade perante a queixa em causa.
Acha verdadeiramente Pedro Passos Coelho que o direito fundamental de acesso à justiça se deve materializar através de subscrições públicas para pagar advogados e taxas judiciais? Acha Pedro Passos Coelho que o seu papel enquanto primeiro-ministro, perante queixas de cidadãos, é o de ser promotor de peditórios, subscrições, quermesses ou afins?
A sua disponibilidade diz muito do modo como vê o papel do Estado e o exercício de direitos fundamentais. No limite, para Passos Coelho, aceder à justiça é só mesmo para quem tem dinheiro para pagar advogados e taxas e, portanto, há que recorrer à caridade para financiar os pobrezinhos.

Ainda falou Passos Coelho, a medo, da existência de patrocínio judiciário pago pelo Estado, é certo. Mas, como pelos vistos isso não convenceu o seu interlocutor, lá lançou a ideia da subscrição. Bem, existem seguramente também alguns milhares de desempregados à espera que o primeiro--ministro lhes consiga pagar, por subscrição pública, advogado para obterem os seus salários em atraso. E alguns milhares de mães que contam com o mesmo procedimento para receberem as pensões de alimentos em dívida. E, provavelmente, vários milhares de pequenos empresários falidos que contam igualmente com o proponente Passos Coelho para cobrar aos seus devedores. 
Afinal, o Estado, que gasta cerca de 50 milhões de euros por ano a pagar advogados a quem não os pode pagar, melhor faria em contar com a disponibilidade casuística da caridade pública. E poderia estender o mesmo procedimento a quase tudo. Cirurgias apenas existiriam quando reunidas as quantias necessárias – quem sabe se através de crowdfunding, para se ser moderno? Pensões de reforma ou subsídios de desemprego, igualmente sujeitos à vantagem das subscrições públicas, talvez consoante as habilidades dos cidadãos em causa, que poderiam cantar ou dançar à noite nas televisões e assim verem os seus direitos serem financiados ou não pelo público, quem sabe se através de uma linha telefónica de valor acrescentado.

Já lá vai o tempo em que as estátuas de Lisboa se erigiam “por subscripção publica”, como se lê ainda nos seus pedestais. Isso era coisa do passado. Agora são os direitos, essas estátuas de vento, a erguerem-se no seu exercício mediante peditório. Não está mal, para quem queira um país feito de estátuas e de pedintes.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira 

A caridade não tem limites


Acha verdadeiramente Pedro Passos Coelho que o direito fundamental de acesso à justiça se deve materializar através de subscrições públicas para pagar advogados e taxas judiciais? 


O primeiro-ministro achou por bem, a meio de uma acção partidária, atalhar o queixume de um cidadão que, segundo o próprio, teria “perdido tudo” no colapso do Grupo Espírito Santo com a ideia de que seria o primeiro proponente de uma “subscrição pública” para financiar o patrocínio judiciário dos queixosos do BES. Independentemente da qualidade em que estivesse a falar, fosse a de primeiro--ministro, fosse a de presidente de um partido candidato às eleições, não deixa de ser bizarro e assustador ouvir este tipo de disponibilidade perante a queixa em causa.
Acha verdadeiramente Pedro Passos Coelho que o direito fundamental de acesso à justiça se deve materializar através de subscrições públicas para pagar advogados e taxas judiciais? Acha Pedro Passos Coelho que o seu papel enquanto primeiro-ministro, perante queixas de cidadãos, é o de ser promotor de peditórios, subscrições, quermesses ou afins?
A sua disponibilidade diz muito do modo como vê o papel do Estado e o exercício de direitos fundamentais. No limite, para Passos Coelho, aceder à justiça é só mesmo para quem tem dinheiro para pagar advogados e taxas e, portanto, há que recorrer à caridade para financiar os pobrezinhos.

Ainda falou Passos Coelho, a medo, da existência de patrocínio judiciário pago pelo Estado, é certo. Mas, como pelos vistos isso não convenceu o seu interlocutor, lá lançou a ideia da subscrição. Bem, existem seguramente também alguns milhares de desempregados à espera que o primeiro--ministro lhes consiga pagar, por subscrição pública, advogado para obterem os seus salários em atraso. E alguns milhares de mães que contam com o mesmo procedimento para receberem as pensões de alimentos em dívida. E, provavelmente, vários milhares de pequenos empresários falidos que contam igualmente com o proponente Passos Coelho para cobrar aos seus devedores. 
Afinal, o Estado, que gasta cerca de 50 milhões de euros por ano a pagar advogados a quem não os pode pagar, melhor faria em contar com a disponibilidade casuística da caridade pública. E poderia estender o mesmo procedimento a quase tudo. Cirurgias apenas existiriam quando reunidas as quantias necessárias – quem sabe se através de crowdfunding, para se ser moderno? Pensões de reforma ou subsídios de desemprego, igualmente sujeitos à vantagem das subscrições públicas, talvez consoante as habilidades dos cidadãos em causa, que poderiam cantar ou dançar à noite nas televisões e assim verem os seus direitos serem financiados ou não pelo público, quem sabe se através de uma linha telefónica de valor acrescentado.

Já lá vai o tempo em que as estátuas de Lisboa se erigiam “por subscripção publica”, como se lê ainda nos seus pedestais. Isso era coisa do passado. Agora são os direitos, essas estátuas de vento, a erguerem-se no seu exercício mediante peditório. Não está mal, para quem queira um país feito de estátuas e de pedintes.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira