© Giorgio Onorati/EPA
O Papa Francisco é um homem extraordinário. É bom, meigo, inteligente e tem sentido de humor. É a imagem de um Deus que ama e acolhe, em lugar de um que espia e castiga. Foge ao jargão que só os que andaram na catequese entendem, e a que mesmo esses são já tantas vezes alérgicos.
Está decidido a conquistar o mundo inteiro, em lugar de pregar apenas aos convertidos, e basta ver como a comunicação social embandeira em arco sempre que fala, para entender que, pela primeira vez, há quem o escute (sim, para desespero dos entendidos que lembram que tudo aquilo vem nos livros — pois sim, mas ninguém os lia!).
Tem mais qualidades, mas estas chegam para garantir a minha admiração. E é porque o admiro que dou por mim a enervar-me quando imagino que vem deitar água na fervura naquilo que ele próprio bem disse ou fez. Foi o que senti quando, esta semana, o Papa Francisco ligou os holofotes sobre a “nulidade do matrimónio”, apelando à simplificação do processo, e à sensibilidade dos juízes do tribunal eclesiástico.
Falou do sofrimento das famílias que se desagregam, de como a falta de conhecimentos dos conteúdos da Fé católica podem levar a “um erro que determina a vontade”, do direito dos fiéis à justiça da Igreja, mas fiquei com a impressão de que indicava uma terceira-via de consenso aos militantes pró e contra “recasados”, que ameaçam sequestrar o próximo sínodo.
E tenho pena porque, cá para mim, não há casamentos nulos. E batalhar a favor deles, leva à incapacidade de entender que a vida se constrói assumindo as decisões que se tomaram, e as suas consequências, em lugar de se passar um pano por cima delas.
Considero mesmo ofensivo acreditar que duas pessoas se casem por amor”, vivam juntas, tenham filhos dessa relação e, no entanto, um dia aleguem que o casamento nunca existiu. Porque eram incapazes de um juízo acerca dos deveres e obrigações que implicava um casamento pela Igreja, o primeiro motivo alegado nos processos, porque eram novos ou velhos demais, porque afinal não queriam ter filhos, porque foram pressionados, porque, na verdade, casaram por dinheiro, já que interesse não havia nenhum!
E ao pedirem que o seu matrimónio seja declarado nulo (coisa diferente de anulado, ao contrário, do que tantas vezes se escreve), acabam por pedir que seja decretado que aquelas crianças não são resultado de uma relação sagrada, essa certeza estruturante e preciosa, deixando-as, em última análise, filhas de mães e pais solteiros!
Tenho para mim, que digam o que disserem os códigos do direito canónico, um casamento nulo é uma mentira. Porque sabe a ciência, sabe a psicologia e sabe o bom senso, que não podemos por o conta-quilómetros a zero, varrendo da cabeça e do coração aqueles que foram importantes para nós, por boas ou más razões, como se fossem nunca tivessem existido.
Suspeito, mesmo, que ganhávamos se fossemos educados (e educássemos) a aceitar o que vida de bom nos trouxe, orgulhando-nos do que fomos capazes de construir, aprendendo com os erros e as falhas, aceitando que quando uma relação acaba, mesmo se contra vontade, não deixa de ter sido importante. Educados na esperança, no optimismo, na capacidade de continuarmos a acreditar e a tentar, na força de nos comprometermos mais e melhor. E na liberdade de escolher o nosso caminho.
A Igreja não pode aceitar um segundo casamento, ponto final? Está no seu pleno direito, e nem sequer considero que aqueles que um dia aceitaram as regras do jogo possam fazer muito mais do que acatar a decisão. Mas, por favor, não procure subterfúgios para o dizer, nem formas ínvias de contornar o problema.
Número em destaque
151 pedidos de nulidade em 2012. A que somam 200 transitados de anos anteriores.
Jornalista e escritora
Escreve ao sábado