Fernando Rosas admite, na entrevista ao i, a grande crise por que passou o Bloco de Esquerda, mas hoje diz que tem o coração reconfortado com “as nossas meninas magníficas” – Mariana Mortágua, Catarina Martins e Marisa Matias.
Acredita que o Bloco vai conseguir manter a mesma representação parlamentar, mas reconhece que a capitulação do Syriza e o voto útil são um risco. Mas nas próximas eleições legislativas, Fernando Rosas aposta tudo num “pólo de esquerda” que junte numa aliança pré-eleitoral o PCP, o Bloco e socialistas mais à esquerda, e que “seja candidato à governação do país”.
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Em que medida continuamos a ser marcados por Salazar?
Para esta geração que tem hoje 30 anos, Salazar é uma figura semelhante ao que era o Afonso Costa para a nossa: um senhor que existiu no princípio do século e parece que foi importante. É um personagem que as actuais gerações vivem sem o dramatismo com que nós vivemos. Nós comemos com o Salazar na pele, no quotidiano, nas nossas vidas, nas vidas dos nossos amigos, familiares. Comemos com ele na pele.
Ele ainda hoje influencia as gerações maiores de 40?
O salazarismo marcou-nos para o resto da vida. Acho que não há ninguém que tenha vivido o salazarismo na oposição que tenha deixado de ser democrata, que tenha deixado de ter amor e respeito pela democracia, apesar de até podermos estar em campos muitos distintos. Nós sabemos que há uma linha vermelha que não se pode atravessar, que é a dos direitos, liberdades e garantias. E isso é uma cultura de base.
Mas continuamos reféns da cultura do “respeitinho é muito bonito”.
Eu não digo que isso não deixou traços. Olhemos para a campanha eleitoral que decorre. O argumento principal da coligação que está no poder é o medo. E isso é sempre uma coisa sinistra, porque o medo é irracional. O medo convida as pessoas não a racionalizar os argumentos, mas a escolher em função das pulsões primitivas: o horror à mudança, o horror ao risco, o horror à modernidade e à modernização. Ficar tudo como está. “Mais vale um pássaro na mão do dois a voar”, dizia Paulo Portas recentemente. Todos estes provérbios reaccionários que vêm de uma cultura camponesa e que estão todos aí.
A coligação está a apelar ao medo?
E está a ser bem-sucedida. O grande argumentário é com base no medo. Ou seja, isto é mau, mas mais vale isto do que a aventura de mudar. Isto foi mau, é muito mau, mas mudar é pior ainda do que isto, portanto vamos manter. Mais vale esta austeridade perpétua, devagarinho, do que qualquer tentativa para mudar para políticas alternativas. E este apelo, num momento de crise, funciona. O sentimento dominante depende da conjuntura material que as pessoas vivem. Neste momento vivemos uma grande incerteza quanto ao futuro. Este ambiente cria revolta? Não. Este ambiente cria medo. As pessoas agarram-se desesperadamente ao que têm.
Corremos o risco de ter uma vitória da coligação baseada no medo?
Se houver vitória da coligação é baseada no medo. Não tenho dúvida nenhuma. É o medo e a irracionalidade que vencem. Não estou a chamar às pessoas estúpidas. Estou a dizer é que estão a ser seduzidas para votar não com base na inteligência e na escolha, mas com base no pânico. E essa é a estratégia assumida da direita em Portugal.
E está a ter sucesso?
A meu ver, está a ter sucesso. Também porque não tem um Partido Socialista à altura.
Porque é que António Costa falhou quando era apresentado como um messias aqui há um ano?
Porque os partidos socialistas na Europa se renderam ao neoliberalismo. E o nosso também. E não começou com António Costa. Começou com António Guterres. O Partido Socialista, sendo um partido com gente de esquerda, neste momento não tem um programa político de esquerda. O programa político do Partido Socialista – vou chamar programa político sobretudo a este programa económico que foi divulgado – tem diferenças quantitativas em relação ao do governo, mas não diferenças qualitativas. Isto é, tem diferenças nos prazos de fazer as coisas, que são mais simpáticas, mas isso não chega para combater o medo. O Partido Socialista assume a impossibilidade de discutir os dois grandes pilares desta política: renegociar ou não a dívida e aceitar ou desobedecer ao Tratado Orçamental. São duas questões fundamentais para o regresso da política social-democrata: as políticas de um mínimo de justiça e equidade social. Hoje é a extrema-esquerda política parlamentar que assume a defesa da social-democracia e do social, da equidade redistributiva. Os partidos socialistas alinharam-se por posições ligeiramente diferenciadas das posições neoliberais e, por isso, eleitoralmente estão pagar em toda a Europa um preço elevadíssimo.
O Partido Socialista português também vai pagar?
Acho que a previsão mais optimista que se pode fazer é que, seguramente, não vai ter o sucesso com que partiu da vitória de António Costa nas primárias para as eleições. Isso não vai ter. De forma nenhuma, e quero deixar isso bem claro, desejo um vitória da direita. É a última coisa que eu desejo. Mas se eles têm tido um aliado eficaz para isso [vitória da direita] é o PS. Se eles têm tido quem lhes facilite a vida neste confronto é o PS, que não quis dar o passo: tentar verdadeiramente estudar alternativas, arriscadas mas alternativas, no sentido da social-democracia. Não é preciso socializar os meios de produção. Estamos a falar de renegociar a dívida. Fazer o que fizeram os alemães no fim da guerra. É certo que há oposição, mas temos de estar preparados para isso.
Mas os eleitores do centro, que querem segurança, podem avaliar positivamente estas propostas do PS…
E o PS, com este programa, está a conquistar o centro? O eleitor comum não vislumbra nenhuma diferença entre o PS e a coligação de direita: uns prometem umas coisas mais depressa e outros mais devagar, mas a substância é igual. No PS há quem não concorde com isto. São aqueles que sabem que não é possível pagar esta dívida. Toda a gente sabe. Estamos a pagar anualmente o orçamento da saúde para juros da dívida. É uma loucura total.
Ninguém tem dúvidas de que não quer a vitória da direita. Mas acha que isso é possível?
Acho que isso é possível. Se as sondagens os dão com um, dois ou três por cento de diferença, quem é que pode dizer que é impossível? Possível, é! Estatisticamente é possível.
Isto é a derrota da esquerda.
É uma grande derrota para a esquerda. É uma derrota para o PS, mas é uma derrota para a esquerda. Toda a esquerda não teria conseguido mobilizar eleitorado suficiente para, pelo menos, pôr alguma travagem a este programa de austeridade perpétua que se nos avizinha. O que vem aí é mesmo austeridade perpétua. Com as imposições que nos põe o Tratado Orçamental, com o serviço de dívida que temos pela frente, não pondo nada disso em causa, é impossível retirar dinheiro para o desenvolvimento económico. É impossível. A direita tenta vender o mito das exportações. Mas as exportações têm um limite, desde logo porque Portugal tem uma capacidade de exportar ela própria limitada. Vem aí uma crise, como a crise da China, ou um abalo qualquer que faz aumentar os juros: o país precipita-se outra vez. A recuperação que houve não tem nada que ver com a política do governo. Que isto fique bem claro. Ficou a dever-se ao Tribunal Constitucional, que repôs a capacidade de consumo, e com uma situação duplamente favorável internacionalmente, que é a intervenção do Banco Central Europeu na compra de dívida e a sorte grande que nos saiu que foi a queda a pique do preço do petróleo. E ainda bem, porque tornou mais baixos os custos de produção.
Como é que a esquerda falha? Estamos desde 2008 em crise. Os planos de austeridade surgiram uns atrás dos outros. Ninguém acreditava que este governo chegava ao fim. Em 2013, Fernando Rosas não acreditava.
É verdade. Penso que o governo beneficiou de uma certa recuperação económica e isso foi importante para restabelecer um pouco a situação. O Tribunal Constitucional evitou algumas medidas que seriam desastrosas e outros factores internacionais que citei também ajudaram. E, sobretudo, a Grécia também não ajudou a esquerda. Na Grécia ensaiou-se uma tentativa de impor um programa alternativo. Acho que o Syriza foi ingénuo. Estive várias vezes na Grécia, falei com muitos camaradas meus do Syriza, e vi uma coisa que me fez muita impressão: é que eles estavam absolutamente seguros de que convenciam os dirigentes europeus de uma solução razoável. E nunca prepararam um plano de regresso à dracma. Nunca. Eles nunca perceberam que o adversário percebeu que eles não tinham um plano B. E quando percebem que era preciso desenhar discretamente um plano – que tem de ser feito com grande discrição para ser apresentado de surpresa, para não haver fuga de capitais –, já não havia capitais porque os capitais tinham fugido todos. Ou seja, foram totalmente encurralados. Quase não tinham saída e foram obrigados a capitular e a dar o dito por não dito. Isso, desde logo, é pouco lisonjeiro para uma União Europeia que não admite que a escolha democrática do povo por uma solução alternativa possa ter espaço dentro dessa União.
Também é pouco lisonjeiro para um Syriza que entra a fazer uma proposta e acaba a engolir um sapo.
A meu ver, é pouco lisonjeiro para o Syriza. Agora, a minha crítica vai sobretudo para a violência e para o desrespeito da escolha democrática dos cidadãos da Grécia. O que eles vieram dizer às pessoas é que na União Europeia não há alternativa no quadro do euro.
As sondagens apontam para uma vitória da Nova Democracia nas eleições.
Isso não me surpreende. Há uma desilusão muito grande. O Syriza foi obrigado a dobrar face à violência da União Europeia. Isso é uma derrota.
Vai ter algum efeito nas eleições portuguesas do próximo 4 de Outubro?
Acho que sim. Temos de chamar sobretudo a atenção para a violência da União Europeia. Mas o que é facto é que o insucesso do Syriza não pode deixar de ter repercussões a nível da Europa toda.
Estamos a falar do Podemos, do BE, do PCP, do PS?
Estamos a falar da esquerda europeia, da esquerda que defende alternativas.
Como é que esta esquerda pode continuar a defender soluções alternativas face a esta Europa que descreve?
O ensinamento que se tira da Grécia não é que não há alternativa. O que tiramos é que tem de existir um plano B. Temos de estar preparados para, se isso não resultar, saltar fora do euro. E essa preparação tem de ser feita com tempo. O Bloco de Esquerda, apesar de não ter havido nenhuma resolução específica sobre isto, aprendeu também que a Europa obriga a ajoelhar quem não tem plano B. OBloco de Esquerda talvez seja dos únicos partidos – talvez o PCP também – que têm gente a preparar e a estudar este tipo de soluções: o que é preciso fazer? Que soluções teremos de adoptar? Com tempo. Não é uma boa solução sair do euro – ninguém diz isso –, mas a austeridade perpétua é uma solução pior. Continuar nisto por mais 20 anos? É este o cálculo de Cavaco Silva: mais 20 anos de austeridade. Isso é que não é solução.
Há gente a pensar o plano B?
O plano B está a ser estudado por gente fora e dentro do BE. Francisco Louçã, João Ferreira do Amaral são dois exemplos. Mas há mais gente e de variadas sensibilidades. É um processo que está em curso. Não é preciso marcar reuniões formais. Mas tudo isto seria mais fácil se o PS aderisse aos dois princípios de que vos falava há pouco:renegociar a dívida e pôr em causa o Tratado Orçamental. Isto seria decretar e consentir caminhos a uma esquerda mais ampla. Esse pólo vai ter de ser construído à esquerda. Se o PS não quiser vir para ele, provavelmente há muitos socialistas que estão dispostos a vir.
Esse pólo juntaria o PCPe o BE? Estes dois partidos parecem muito próximos agora.
No BE, provavelmente, há pessoas que pensam que uma futura aliança com o PCPé prematura. Mas isso faz parte. O PCPe o BE têm uma proximidade grande nesta matéria, mesmo considerando as diferenças que toda a gente sabe quais são – diferenças de cultura histórica. Nós não consideramos que haja socialismo na China; não temos reuniões com o partido comunista na China; nem achamos que a Coreia do Norte seja uma democracia brilhante. Ou seja, temos ideias sobre o socialismo, sobre a história do socialismo que marcam diferenças culturais importantes com o PCP. Mas estas diferenças não são o que interessa neste momento. Estamos absolutamente capazes de passar por cima destas diferenças para chegarmos a um entendimento em torno das duas questões essenciais e apontar para políticas de desenvolvimento económico e de criação de emprego. É tão simples como isso. É uma plataforma possível.
Mas esta plataforma chega só com o PCP e com o BE?
O PCP e o BE, provavelmente, vão ser o motor desta plataforma. Não chega só com o PCP e com o BE. Tem de meter mais independentes. Tem de meter, provavelmente, gente da esquerda do PS.
Estamos a falar de uma plataforma eleitoral?
Podemos chegar aí. Não me repugna nada esta ideia. Mas reforço que esta é uma posição minha. Dou esta entrevista em nome pessoal, e não em nome do Bloco de Esquerda.
Mas imagina então no futuro uma plataforma eleitoral que junte PCP e BE?
Era um caminho que veria com muita simpatia e para o qual estou inteiramente disponível para trabalhar. Acho que este é o caminho necessário. É certo que entre o PCP e o BE há o peso do passado. Mas estas diferenças, com o tempo, valem o que valem. Há uma cultura diferente, há um passado diferente, há estas coisas todas. Mas estas coisas todas valem muito pouco perante aquilo que é uma necessidade histórica e política do momento, que é a de concertar um eixo político entre o BE e o PCP como núcleo organizador de um pólo de esquerda. De um pólo de esquerda eleitoral. Um pólo de esquerda que seja candidato à governação do país.
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