A liquidação total da Praça de Espanha

A liquidação total da Praça de Espanha


A feira vai acabar no fim do mês e os vendedores já não querem falar. Só querem vender e fomos descobrir se há realmente bons negócios.


“Ultimos dias, tudo à 10 euros”, lê-se num cartaz numa das bancas da fila da frente da Praça de Espanha. Ninguém presta sequer atenção ao acento que saltou do U para o A e ainda deu meia volta. Não há tempo a perder e há que lançar as mãos à (aqui sim, podemos usar um “à”) pilha de sapatos que se acumula numa caixa.

Ao lado, outra pilha com ainda mais descontos. Por 5 euros leva uns ténis que passariam perfeitamente por All-Star e, se quiser gastar mais uns tostões, há “sandálias de pele a partir de 20 euros”. São os últimos dias da feira da Praça de Espanha – na quarta-feira, 30 de Setembro, acabou–se a festa – e são também estes os melhores dias para compras.

“Queremos vender isto o mais rápido possível”, diz uma vendedora de cachecóis e camisolas de futebol que não se quer identificar. Aliás, ninguém se quer identificar. “Já falámos tudo ontem, à TVI e ao ‘Correio da Manhã’”, respondem-nos outros vendedores. “Já não há mais nada a dizer. Vamos embora e pronto. Já vêm atrasados, deviam era ter vindo há mais tempo.”

Esta coisa dos últimos dias atrai sempre a atenção dos media e, pelos vistos, já estamos atrasados para conversas mais sérias. “Houve uns [vendedores] que começaram aí a reclamar e agora já se calaram”, comenta alguém. “Reclamaram, mas não há nada a fazer, concordaram com a decisão da câmara e os papéis já estão assinados.”

Os papéis já estão assinados e as indemnizações aos vendedores já começaram a ser discutidas. Ao todo são 820 mil euros que serão repartidos pelos 69 vendedores do local, alguns que já estão ali há mais de 30 anos. Como a tal vendedora de cachecóis de futebol (ali encontram-se até cachecóis do Borussia Dortmund ou do Olympiacos), que diz não ter férias desde os 12 anos. “Já venho desde os tempos em que as bancas estavam no Martim Moniz. Eram as mesmas bancas, mas foram restauradas quando as trouxeram para aqui.”

UM CHINÊS COMPROU ISTO As bancas azuis (as melhores para o negócio são as que têm vista para a estrada) deverão ser demolidas no fim do mês e já começaram as especulações quanto ao futuro da Praça de Espanha. “Já ouvi que um chinês comprou isto, já ouvi também que foi o Montepio, já ouvi dizer que vai ser uma estrada…” Um vendedor indiano já ouviu muita coisa e não chegou a conclusão nenhuma. A única conclusão é que, depois disto, deverá ficar-se só pela Feira do Relógio, aos domingos. “Apareça lá para ver como é.”

No fim do mês, os vendedores têm de procurar outras paragens, mas alguns apontam o dedo à câmara por não lhes ter oferecido uma alternativa de espaço para vender. “A indemnização vai dar para viver poucos meses”, continua o vendedor da Feira do Relógio. “Isto aqui vai acabar e agora já não adianta nada falar.”

AUTO-REALIZAÇÃO Há bancas vazias e há outras que continuam a funcionar como se o fim não estivesse próximo. Uma costureira continua o seu trabalho de volta de uma máquina e dois homens conversam noutra banca como se estivessem num café, um deles com o livro “A Ciência da Auto-realização” na mão.

Se a sua auto-realização passa por procurar pechinchas, está no sítio certo à hora certa. E já nem estamos a falar de óculos “Ray Ben”, que isso já passou de moda. Ninguém quer falar do fim que se avizinha, mas para descontos já é outra conversa. “Para si, é 5 euros”, diz-nos um vendedor na banca da “tecnologia” a propósito de um pau de selfies, outra boa ferramenta para se auto-realizar.

Há cuecas Enzo (Pérez?), outras Dulce & Camino, toalhas de praia Bob Marley, bandeiras de Portugal – ou do 50 Cent, conforme as suas convicções –, vestidos de noite “a partir de 10 euros”, outros fatos de gala, desta vez para crianças, malas de porão que satisfazem as exigências da companhia aérea mais mesquinha e tudo o que se possa imaginar (menos uma carteira do Batman, essa levámo-la). 

Na loja de discos há várias oportunidades de negócio, como a de “3 CDs por 10 euros”. Por exemplo, um Caribe Mix de 2010, o álbum “Salsilouca T’Amarrado Olho Grande”, que só pode ser bom, e a “Definite Collection” de Otis Redding pelo meio. Liquidações.

FINALMENTE DE FÉRIAS Para o local da feira, Fernando Medina, na proposta feita pela câmara, prevê a “criação de uma praça pública de qualidade perfeitamente integrada na malha urbana, com vocação relevante para a fixação de actividades de lazer, estruturada por percursos pedonais de continuidade com a envolvente e bem servida por transportes colectivos.”

É esperar para ver o que isto significa e, até lá, ajudar os vendedores a esvaziar as bancas. Por exemplo, esgotando o stock de camisolas do Cristiano Ronaldo, um bestseller entre os turistas do Hotel Açores, ali mesmo em frente. “Olhe, depois disto vou finalmente de férias. Desde que vim para aqui que não tenho férias”, remata a vendedora.