A foto


Se publico a foto sou hipócrita, se não publico sou insensível, se publico é porque não faço nada pelos portugueses que sofrem, se não publico é porque não quero saber dos sírios. 


© Darryl Dick/AP

Eis-nos chegados ao auge do caos moral nas redes sociais, num momento em que o mundo devia comover-se e mobilizar-se pela tragédia dos migrantes e refugiados. Acontece que essa comoção e mobilização mais parece uma compita na selva dos bitates que é a internet. Ruge bem alto a fera da superioridade moral e não se ouve mais nada. Abafa o pedido de ajuda, aquilo que realmente interessa. 

É tarde de mais para recorrermos ao Facebook como ferramenta política ou de solidariedade porque uma boa parte dos seus utilizadores, enquanto pensa que está a fazer pelo mundo, está na verdade a protagonizar uma guerra de porteiras aborrecidas, que julgam os outros por não serem tão bons como eles próprios se julgam.

Preferia, meus amigos, que se limitassem a falar do rabo da Kim Kardashian – esse sim, é o tipo de assunto de que se pode falar da boca para fora (e peço desculpa por ter posto “boca” tão perto de “rabo”).

Se publico a foto sou hipócrita, se não publico sou insensível, se publico é porque não faço nada pelos portugueses que sofrem, se não publico é porque não quero saber dos sírios. Ah, que saudades dos tempos em que íamos para a rua fazer cordões humanos de solidariedade e até dávamos a mão a estranhos sem sequer nos passar pela cabeça especular sobre as suas motivações nem julgar a sua forma de se manifestarem – porque afinal estávamos ali todos ao mesmo.

É impossível destrinçar a abnegação da vaidade. E o mais importante é que é irrelevante essa destrinça. É como aquelas pessoas que compramT-shirts do Hard Rock Cafe em todas as cidades por onde passam: eu sei lá se realmente gostaram de lá estar ou se querem só mostrar que lá estiveram. Na verdade, não quero saber. Mas o marketing, pelos vistos, resulta.

Se aquela foto postada até à exaustão servir para sensibilizar toda a gente para o que se está a passar, tanto melhor. Porém, começo a ter sérias dúvidas: a discussão tem-se afastado de tal forma do essencial que, de tanto se falar da dolorosa foto, não tarda olhamos para ela e já não vemos nada.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado