“Se todo o ano fosse de férias, divertirmo-nos tornar-se-ia mais aborrecido do que trabalhar.” A frase é de Shakespeare em “Henrique IV” e resume a magia das férias: sabem bem, mas porque são a excepção. Daniel Sousa, especialista em psicologia clínica e director da clínica do ISPA – Instituto Universitário, alerta que, mais do que aceitar que existe uma melancolia patológica quando acabam os dias do dolce far niente, é preciso pensar que sintomas de depressão que perdurem no tempo são sempre um sinal de alerta. “Para muitas pessoas que se sentem mal com o seu quotidiano, mesmo que não o percebam, as férias funcionam como um entre parênteses e, quando regressam, voltam a sentir-se mal. Mas não existe uma entidade nosológica ligada às férias, uma doença. O problema já lá estava.”
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Nuno Sousa, também psicólogo clínico, concorda. “O regresso de férias é simbólico do regresso à rotina, aos conflitos não só no trabalho, mas também na intimidade. As pessoas acabam por despertar para problemas que já existiam.”
Nos últimas dias repetem-se na imprensa os artigos sobre a famosa síndrome pós-férias, na língua inglesa os “holiday blues”. Se a psicologia é prolífera em estudos, uma pesquisa nas principais bases de dados de artigos científicos não revela qualquer investigação sobre esta condição, que não aparece também na mais recente actualização do manual de psiquiatria mais usado em todo o mundo, o “DSM-5” (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais).
O fenómeno Daniel Sousa defende que nos últimos anos tem havido uma tendência exagerada para conotar vivências psicológicas com patologias, o que, aliado às redes sociais, pode dar corpo a este tipo de fenómenos. A raiz, contudo, parece-lhe estar mais no cruzamento entre a psicologia e a sociologia. “O ser humano sempre procurou um sentido para a vida e parece-me que estamos a viver uma época em que caem os sistemas de crenças tradicionais e as pessoas se viram para alternativas, à procura de respostas que, muitas vezes, não são imediatas.”
A esta crise juntam-se os problemas relacionados com os ritmos de trabalho. “O que posso dizer é que ninguém aparece na clínica a dizer ‘vim do Algarve e a minha vida tornou-se uma chatice’.” Nuno Sousa diz que muitas vezes a rentrée é altura de referenciação para o psicólogo, mas sobretudo porque é quando as pessoas se confrontam com os problemas no trabalho que ocupam parte substancial das suas vidas. “Quando me procuram a dizer que só querem descanso e ser felizes, tenho de dizer que ser feliz dar muito trabalho”, sublinha o especialista. Não é o trabalho de secretária. Para Nuno Sousa, parte desta melancolia latente resulta também de uma certa cultura “masoquista” entre os portugueses, que os faz trabalhar muitas horas para não produzir assim tanto e descurar outras vertentes do bem-estar. “Ninguém é feliz só com o trabalho, como ninguém é feliz só com o casamento.”
Mal geral Em Portugal não há estudos sobre a incidência da síndrome pós-férias, que se estima afectar entre 20% a 50% dos trabalhadores. As pistas mais recentes surgem num trabalho encomendado pela Auto Europe a uma consultora e que traça um retrato do que se passa, no presente, no Reino Unido. O estudo divulgado no fim de Agosto incluiu entrevistas a 1000 pessoas e concluiu que mais de metade dos trabalhadores (57%) se sentem desmotivados ou deprimidos ao regressarem de férias. As mulheres sofrem mais com o problema, embora o inquérito não tenha apurado os motivos. Mais de um terço lida com a depressão pós--férias gastando dinheiro, um em cada dez admite beber mais nesta altura e 21% marcam novas férias. Segundo o mesmo estudo, 15% dos trabalhadores dizem-se tão stressados com o regresso que parece que nunca foram de férias. Ainda assim, 31% dizem ter-se sentido felizes e retemperados quando voltaram ao trabalho.
“É preciso perceber que somos seres dinâmicos, capazes de atingir depressões profundas, mas também êxtases de felicidade. Se alguém, nos últimos tempos de férias, há um dia em que acorda a meio da noite e tem uma insónia em que pensa no trabalho que vai ter ao voltar, na chatice da reunião, isso pode ser normal. É normal angustiarmo-nos”, diz Daniel Sousa. “Se a insónia se repetir e se a angústia se tornar permanente, então deve procurar-se a ajuda de um profissional.”
Se a ciência ainda não chegou a nenhum veredicto sobre a depressão pós-férias, há pelo menos alguns investigadores que se têm dedicado à investigação sobre as férias ideais. Não gastar os cartuchos todos de uma vez e perceber que a fase mais feliz é quando se está a planear são alguns dos conselhos. Nuno Sousa acrescenta que o recomeço pode ser o momento ideal para explorar novos interesses ou aprofundar relações com amigos e família, abrindo então o leque de sentidos para a vida. “Temos de ser proactivos e procurar resolver os problemas que nos afectam no trabalho, mas geralmente a maior tolerância às complicações obtém-se quando a pessoa passa a fazer mais coisas para si. O trabalho é importante, mas não é tudo.”