O BLAIRISMO, doença infantil do neoliberalismo e expressão personificada do New Labour e da chamada Terceira Via, é uma doença maligna que afectou profundamente, e como que “reformatou”, os partidos ditos de governo da Internacional Socialista.
É hoje evidente que os partidos sociais–democratas, socialistas e trabalhistas europeus foram contaminados, no final do século XX, pelas ideias veiculadas pela Terceira Via – defendidas sobretudo por Tony Blair (que criou o New Labour) e pelo seu sociólogo de serviço, Anthony Giddens (autor do conceito de Terceira Via, entre a esquerda e a direita), mas também pelo então líder do SPD alemão Gerhard Schroeder (adepto do chamado Novo Centro).
O New Labour foi criado em nome da “modernidade” e para responder ao impacto da globalização. Foi apresentado como uma alternativa moderna de centro-esquerda, com base no argumento segundo o qual esquerda e direita tradicionais já não conseguiam apresentar propostas viáveis e dar respostas eficazes aos novos desafios económicos, sociais e políticos.
A primeira batalha travada por Tony Blair e por Gordon Brown (então aliados) quando tomaram conta do Partido Trabalhista, em 1994 (após a morte súbita e inesperada do seu líder John Smith), foi a de suprimir o artigo 4.o dos estatutos do partido, que previa a socialização dos meios de produção. Ganha esta batalha, Blair conseguiu reduzir drasticamente o peso e a influência dos sindicatos no aparelho do partido, com o apoio dos militantes que o tinham elegido.
Digamos que na cabeça dos dirigentes do New Labour se impôs rapidamente a ideia de que os seus verdadeiros “inimigos” eram “os extremistas de esquerda” (ou seja, os sindicalistas e as classes trabalhadoras tradicionais). Por isso, o Partido Trabalhista tinha de se “recentrar” (isto é, situar-se no centro do centro, ou, como dizem os franceses, no juste milieu) e preocupar-se acima de tudo em conquistar as “novas classes médias”.
Tony Blair concebeu e estruturou o New Labour como uma empresa privada, com métodos de marketing transpostos para a política e com especialistas em comunicação (os famosos spin doctors) incumbidos de vender o produto New Labour e impor a sua agenda política aos meios de comunicação social.
Na visão de Tony Blair, a empresa era considerada como uma comunidade harmoniosa de interesses que agrupa os accionistas, os assalariados, os clientes e os fornecedores. Reinventou, assim, uma mística política em que a noção de harmonia social exclui e repele a ideia de luta de classes.
O sociólogo Anthony Giddens, principal teórico da Terceira Via, chegou mesmo a diagnosticar explicitamente o arcaísmo da esquerda face à revolução neoliberal, assim como o carácter ultrapassado do Estado perante a “ideia fulcral e incontornável” da mundialização. Cito o que ele escreveu:
– “A política da terceira via deve adoptar uma atitude positiva em relação à mundialização”;
– “Os governos sociais-democratas já não podem utilizar os métodos tradicionais de estímulo à procura e do recurso ao Estado, porque os mercados financeiros não o permitiriam”.
Ou seja – comento eu –, Anthony Giddens aceita o primado não democrático dos mercados financeiros e a sujeição dos Estados e dos governos (democraticamente eleitos, note-se) às suas imposições. Para Anthony Giddens, a Terceira Via pretende constituir-se como um novo modelo entre o “conservadorismo thatcherista” e o “trabalhismo tradicional”. Mas é óbvio que a Terceira Via se tornou, sobretudo, um instrumento de combate à tradição trabalhista e social-democrata e se traduziu quer numa clara aproximação (e mesmo adesão) às teses neoconservadoras de Margaret Thatcher, quer na adopção de políticas preconizadas pela cartilha neoliberal.
Um dos mais importantes spin doctors de Tony Blair, Peter Mandelson, chegou mesmo a afirmar, em 10 de Junho de 2002, em entrevista ao “Times”: “We are all thatcherists now!” (Agora somos todos thatcheristas!) Foi como se os principais dirigentes dos partidos da IS afirmassem: “Agora somos todos neoliberais!”
Os spin doctors desempenharam um papel muito nefasto em todo o processo de descaracterização do trabalhismo britânico e da social-democracia (ou socialismo democrático) europeus. São definidos e qualificados, indiferentemente, como peritos em provocar reviravoltas na opinião pública, como fabricantes de consensos, como especialistas em moldar a opinião pública, como manipuladores exímios e como eminências pardas.
Alastair Campbell, outro dos famosos spin doctors de Tony Blair, desenvolveu uma estratégia de guerra permanente com o objectivo de impor aos media a agenda política do governo. Não hesitou sequer em fornecer aos ministros de Blair uma série de argumentários e de “pequenas frases assassinas”, inclusive com informações consideradas “lixo”, para desestabilizar os adversários.
Tratou-se, fundamentalmente, de uma verdadeira campanha de despolitização do espaço público que se saldou pelo triunfo da forma (de comunicação) sobre o conteúdo (das políticas). O próprio político foi transformado num produto de marketing, num contexto em que a sua personalidade e o seu sorriso se tornaram trunfos no mercado mediático.
A Terceira Via blairista inseriu-se, de facto, num movimento geral europeu de convergência ideológica dos partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas em direcção àquilo a que muitos chamaram social-liberalismo, na realidade uma versão atenuada do neoliberalismo.
Tony Blair é ainda hoje considerado (pela direita) como um “digno herdeiro” da revolução (eu diria contra-revolução) levada a cabo por Margaret Thatcher na Grã-Bretanha.
Nos anos de viragem do século XX para o século XXI, Tony Blair conseguiu exercer um verdadeiro fascínio sobre os partidos socialistas e sociais–democratas europeus (designadamente aqui em Portugal, com António Guterres e todos os seus sucessores na liderança do PS, salvo porventura o caso de Ferro Rodrigues).
A apoteose do modelo da Terceira Via terá sido o manifesto Blair-Schroeder, assinado e publicado em 1999, antes das eleições europeias de 2000, quando a União Europeia a 15 ainda contava com 11 governos socialistas, sociais–democratas e trabalhistas.
Nessa altura, Tony Blair queria mesmo ir mais longe para validar o seu novo paradigma social-democrata, propondo a criação de uma “Internacional Democrata” que conseguisse suplantar e substituir a Internacional Socialista. Mas as derrotas eleitorais de 2000, na maioria dos países europeus, inviabilizaram, felizmente, esse projecto. Hoje, 15 anos passados, já é tempo de começar a fazer um enorme esforço político e ideológico para reabilitar os princípios e valores do socialismo democrático e da Internacional Socialista.
Cronista, jornalista, político, ex-deputado e ex-secretário de Estado português