Rita Ferro. Retalhos da vida de uma escritora

Rita Ferro. Retalhos da vida de uma escritora


Depois de “Veneza Pode Esperar” chega o segundo diário, “Só Se Morre Uma Vez”, em que partilha memórias, reflexões e o que ainda a surpreende na passagem para os 60 anos.


A morte é um acontecimento em vida. Devemos preparar-nos para ela como nos preparamos para casar ou entrar na faculdade. Exige organização exterior, como rasgar cartas ou cuidar do físico para não carregar a velhice ou os filhos, e interior, reunindo coragem e forças, gradualmente, entre tudo o que a espiritualidade nos foi ensinando ao arrepio de uma vida bruta e materialista. Até conseguirmos o absoluto despojo do ego, da vaidade, do orgulho, do rancor, do dinheiro.” A ideia é de Rita Ferro, que decidiu dar ao seu segundo diário o título “Só Se Morre Uma Vez – Diário 2”.

Pode parecer fatalista a escolha do título do sucessor de “Veneza Pode Esperar – Diário 1”, mas a escritora desmistifica a ideia e reduz o peso da frase. É a única certeza na vida e simultaneamente apanha-nos desprevenidos, como nota a autora. Talvez para que entretanto não nos esqueçamos de viver. Mesmo quando a passagem do tempo se começa a reflectir no rosto, isso não tem necessariamente de ser o fim. Afinal “Só Se Morre Uma Vez” devolve, como reflexo no espelho, a expressão “Só se vive uma vez”.

Rita Ferro chega a este diário ao mesmo tempo que atinge os 60 anos. Diz nunca ter sentido nenhuma barreira pela data redonda, mas confessa que pela primeira vez sentiu o “terror” de ver desenharem--se rugas que mentalmente tinha estabelecido “como o limite para se poder ser considerado um objecto de desejo”.Logo a seguir admite que acaba por ser uma “projecção histérica” sua, até porque todos os dias conhece histórias de pessoas que se apaixonam com 60, 70 ou 80 anos. “O amor é de alma para alma, e se não for dura pouco. Já tinha obrigação de o saber [risos].” 

Este tipo de confissões percorre o mais recente livro de Rita Ferro, ou não estivéssemos a falar de um diário. Nele diz, páginas tantas, que se sentiu cansada de interferir directamente na animação da sua vida. 

O que diverte então a escritora nesta fase? “Mostrei-me um dia indisponível para organizar algazarras e o telefone deixou de tocar. Tomei consciência de que a vida intensa e variada que tinha não existiria se não fosse eu a urdi-la hora a hora. Bastou parar um bocadinho para perceber que o inverso, passando o exagero, nunca acontecera. E chega o dia em que nos cansamos, não é? Foi quando comecei a responder a quem me perguntava ‘Então? Nunca mais apareceste!’ uma coisa desagradável: ‘Mas eu por acaso sou alguma Nossa Senhora para aparecer numa azinheira?’ O que me diverte nesta fase da vida? Não sei, talvez as convicções. Nunca tive nenhuma, penso eu.”

Até porque como nos diz no livro, “antes pior que igual”. O que não significa que tenha havido uma mudança na sua essência. Por não saber contrariar a sua própria natureza, diz ser quem sempre foi, com tudo mais exacerbado.

“Quando dizem que sem sentido de luta não poderia ter escrito os meus livros, respondo que não houve nem luta nem mérito. A escrita jorra.”

A nova fase da vida trouxe-lhe outros hábitos. Foi viver sozinha, embora isso entretanto já tenha mudado. Mesmo assim não deixa de ver esse momento como uma conquista, que deu lugar a um carimbo chamado liberdade. “Atravessei um deserto invernoso até saber degustá-la. Aí está uma vitória da idade.”

Da mesma forma que é incapaz de ter rotinas, também não deixa a autocompaixão apoderar-se de si, mantendo-se ciente das pequenas corrupções morais diárias ou das aprendizagens e realizações que ficaram por concretizar. “Saber distinguir o bem do mal, claramente, rouba-nos qualquer hipótese de indulgência.”

E isso aplica-se também àqueles por quem nutre admiração e a quem tem ligação, como a família Espírito Santo, a quem escreveu uma carta aberta, publicada no “Expresso”, em 2010, e republicada em “Só Se Morre Uma Vez”. Porém, garante que o que escreveu não vai conhecer desenvolvimentos no prometido “Diário 3”. “Não pretendi de forma alguma vexar a família – o comandante Ricciardi, por exemplo, é meu familiar, e alguns membros eram próximos dos meus pais – mas alertá-la para o que nem ela própria parecia notar. Senti necessidade de o fazer, mas não sou perdigueira: a minha intervenção terminou ali.”

Dos seus diários não saem histórias para a ficção ou outros livros. A selecção do que publica naqueles é feita ao correr da pena, e também de uma autocensura mais instintiva que pensada. 

Neste momento encontra-se a escrever “o tão anunciado livro sobre António Ferro”, seu avô, com o qual se diz entusiasmada, depois de muito tempo aterrorizada. “Chegou-me a abordagem, que é o mais difícil num livro como este, a uma figura tão controversa, e sobretudo tratando-se de uma neta que nasceu um ano antes de ele morrer.”

Depois virá o terceiro diário e a seguir um novo romance, talvez, finalmente, o seu, se arranjar coragem, como refere. Esperança não faltará à autora de “Uma Mulher não Chora”, que confessa partir para cada nova possibilidade “totalmente virgem, sem as lições aprendidas e com a vibração dos 18 anos”. “ Um balanço positivo é verificar que a vida até agora não me derrotou.”