Sempre achei um disparate que a lei portuguesa obrigasse os pais a deixar a quase totalidade dos seus bens aos filhos. Mesmo que tenham vontade de dispor daquilo que lhes pertence de uma outra forma qualquer, de premiar os filhos com muito, pouco ou nada, de beneficiar mais um do que o outro, seguindo ditames da cabeça ou do coração, nada feito. São dois terços para os herdeiros directos, e igual entre irmãos, ponto final.
Acho que tomei consciência do veneno com que o nosso direito sucessório contamina as relações entre pais e filhos no dia em que uma vizinha me apanhou na rua e me sussurrou ao ouvido que queria casar. Tinha reencontrado o amor, explicou-me, e andava com um sorriso de orelha a orelha para o confirmar. Os sapatos cheios de brilhantes e o “fino” que agora pedia em lugar do habitual galão diziam o resto. E tudo era um mar de rosas até que os descendentes, que há anos não a visitavam, alertados por alguma quadrilheira do prédio, chegaram de escantilhão, decididos a averiguar o que se passava. Casar? Nem pensar, nem tão- -pouco união de facto, que isto com as leis modernas, na hora da herança, vai dar tudo ao mesmo, protestaram as três criaturas, momentaneamente unidas entre si.
A minha vizinha venceu-os, viva a minha vizinha, e durante anos, até morrer, vi-a, ufana, passear de braço dado com o novo marido (“O outro está no Céu, D. Isabel, que Deus o tenha”), que parecia tão satisfeito como ela ( “O coitado, desde que a esposa lhe morrera, D. Isabel, tinha lá uma pilha de roupa sempre por engomar”, contava-me).
Não foi o primeiro nem o último caso, meio social acima, meio social abaixo, em que a presunção dos filhos de que tinham direito a herdar dos pais infernizou a vida de famílias inteiras.
É que o problema começa muito antes da morte dos pais, quer ver? Logo para começar, a certeza de que aquele pé- -de-meia pertence aos filhos leva os próprios pais a autolimitarem os seus gastos, como se estivessem de alguma forma a roubar os filhos da herança expectável. E a coisa é de tal forma interiorizada que os próprios filhos passam, de facto, a encarar o dinheiro que os pais usam em si mesmos como um verdadeiro desfalque. Porque há-de o pai comprar um carro de alta cilindrada quando um utilitário é tão mais adequado a um velhinho? E que ideia é essa de umas férias num cruzeiro, quando sempre se deram tão bem com o clima lá da terra? E para que é que ficam numa casa tão grande, quando se pode vender para ajudar a pagar a entrada da casa do neto, aconchegando-se os avozinhos num T1 em que, ainda por cima, se gasta menos em aquecimento?
Daí a uma rivalidade crescente e com os irmãos, vai um passo. Então, se tudo lhes pertence por direito, então é para dividir em partes iguais, e toca de contabilizar o que os pais ofereceram a um e a outro, num deve e haver constante. E os pobres pais lá se espartilham mais um bocadinho, cheios de medo da retaliação por alguma suposta injustiça.
Cá para mim, aconselhava todos os velhinhos a estoirarem o que sobeja do fisco como lhes der na real gana. Os filhos que se façam à vida! Os meus já estão avisados.
NÚMERO: 2/3 da herança pertencem, por lei, aos descendentes directos.
Jornalista e escritora
Escreve ao sábado