O Verão em que aprendi a nadar


A gratidão é um dos mais importantes sinais de saúde mental. Tenho a certeza de que é verdade. Desajeitadamente agradeço.


© Afonso Palma

Escrevi este texto, com uma manta sobre os joelhos. Em Sintra, mesmo no pino do Verão, as traças não têm sorte nenhuma. Há dias em que temo até que, por falta de lã, se atirem à memória, e devorem a recordação de histórias, nomes e sobretudo pessoas. Ai fico aflita, e na impossibilidade de as conservar em bolas de naftalina, tenho vontade de as passar a escrito, na ingenuidade de que o papel dura para sempre. Mas não é a ânsia de imortalizar as minhas recordações que me move, mas o medo de que o tempo passe sem que faça justiça, demonstre gratidão. Mesmo que seja a alguém que já cá não está.

Era tudo muito bonito se, tantas vezes, o resultado final não parecesse tão aquém do que sentimos e queremos dizer, tão sem asas que o levem para longe do “piroso”, ao ponto de darmos por nós a carregar com força no delete, voltando a encarar a página em branco. E  lá vai a gratidão para o fundo da caixa, à espera de uma oportunidade.

Como aconteceu hoje quando as minhas netas atravessaram pela primeira vez uma piscina a nadar ( “Avó, quer bruços, crawl ou à cão?”), e me lembrei de quem me tinha ensinado a mim a dar as primeiras braçadas.

Aconchego-me na manta, e tenho vontade de rir. O rei D. Carlos dizia que o Inverno passava o Verão em Sintra. Passava o Inverno e passávamos nós, oito filhos de férias de três meses, sem que os jornalistas se interessassem, então, pelos queixumes que os nossos pais certamente faziam de que era tempo demais, ou que íamos esquecer tudo o que tínhamos aprendido na escola. Acordávamos invariavelmente na neblina, mas marchávamos como se nada fosse para a praia, as camisolas enfiadas numa antecipação, sábia aliás, da proteção solar que agora se advoga. Era preciso “tomar iodo”, pouco importava que os raros dias de bandeira verde não chegassem para que aprendêssemos a nadar.

1969 – Marx Spitz ganhou 6 medalhas de ouro, tornando-se nadador do ano

Ficávamos especialistas em furar ondas, e em “rolas”, na arte de nos mantermos à tona da água gelada, mas pouco mais. Mas, no verão de 1969, tinha eu nove anos, quando o pai das minhas melhores amigas construiu uma piscina em casa e decidiu que me ia ensinar a nadar. O tio Augusto tinha olhos azuis cintilantes, uma gargalhada contagiante, e ainda hoje sei de cor “O Circo desceu à Cidade” que cantávamos nas viagens, mas não suportava pieguices, e quando se zangava, zangava mesmo. Por isso se queria que nadasse, eu nadaria, engolindo o medo, agarrando-me à esperança de que no final se orgulhasse de mim! Resultou.

Entusiasmada, aprendi a mergulhar, a saltar da prancha, mais tarde a descer no escorrega e, pelo meio, a andar de bicicleta e de burro. Enquanto isto, a tia Mi geria com generosidade os efeitos secundários de ter uma piscina, coisa rara na altura, acolhendo aqueles que apareciam inesperadamente, fugindo da neblina que caia (de novo) ao fim da tarde na praia. Lembro-me bem da limonada e das fatias de pão saloio, quente e com manteiga.

Quanto a mim, tratava-me como uma filha adotiva. Que foi ficando de Verão para Verão, de ano para ano.

Aos 93 anos, está tão bonita como sempre, sem um cabelo fora do sítio, e falamos dos temas mais improváveis, espantando-me com a abertura de espírito que juraria que não tinha então, sem que deixe de lado os seus preconceitos, que agora já só me fazem rir (a mim e a ela).

Há dias voltei a encontra-la, não seria Verão se a filha adotiva não voltasse à casa paterna, e no final da conversa disse-me, sem dramas: “Sempre gostei muito de si, e vou gostar até morrer. Nesse dia, chora umas lágrimas sentidas por mim?” Jurei-lhe que sim. Mas a eternidade que conquistou em mim, não está nas lágrimas, mas nas memórias e na gratidão, que ficam sempre. Quanto às minhas netas, voltam muitas vezes à mesma piscina, acolhidas como eu fui. Faz-lhes falta, como me faz a mim, o melhor dos professores.

Jornalista e escritora
Escreve ao sábado

O Verão em que aprendi a nadar


A gratidão é um dos mais importantes sinais de saúde mental. Tenho a certeza de que é verdade. Desajeitadamente agradeço.


© Afonso Palma

Escrevi este texto, com uma manta sobre os joelhos. Em Sintra, mesmo no pino do Verão, as traças não têm sorte nenhuma. Há dias em que temo até que, por falta de lã, se atirem à memória, e devorem a recordação de histórias, nomes e sobretudo pessoas. Ai fico aflita, e na impossibilidade de as conservar em bolas de naftalina, tenho vontade de as passar a escrito, na ingenuidade de que o papel dura para sempre. Mas não é a ânsia de imortalizar as minhas recordações que me move, mas o medo de que o tempo passe sem que faça justiça, demonstre gratidão. Mesmo que seja a alguém que já cá não está.

Era tudo muito bonito se, tantas vezes, o resultado final não parecesse tão aquém do que sentimos e queremos dizer, tão sem asas que o levem para longe do “piroso”, ao ponto de darmos por nós a carregar com força no delete, voltando a encarar a página em branco. E  lá vai a gratidão para o fundo da caixa, à espera de uma oportunidade.

Como aconteceu hoje quando as minhas netas atravessaram pela primeira vez uma piscina a nadar ( “Avó, quer bruços, crawl ou à cão?”), e me lembrei de quem me tinha ensinado a mim a dar as primeiras braçadas.

Aconchego-me na manta, e tenho vontade de rir. O rei D. Carlos dizia que o Inverno passava o Verão em Sintra. Passava o Inverno e passávamos nós, oito filhos de férias de três meses, sem que os jornalistas se interessassem, então, pelos queixumes que os nossos pais certamente faziam de que era tempo demais, ou que íamos esquecer tudo o que tínhamos aprendido na escola. Acordávamos invariavelmente na neblina, mas marchávamos como se nada fosse para a praia, as camisolas enfiadas numa antecipação, sábia aliás, da proteção solar que agora se advoga. Era preciso “tomar iodo”, pouco importava que os raros dias de bandeira verde não chegassem para que aprendêssemos a nadar.

1969 – Marx Spitz ganhou 6 medalhas de ouro, tornando-se nadador do ano

Ficávamos especialistas em furar ondas, e em “rolas”, na arte de nos mantermos à tona da água gelada, mas pouco mais. Mas, no verão de 1969, tinha eu nove anos, quando o pai das minhas melhores amigas construiu uma piscina em casa e decidiu que me ia ensinar a nadar. O tio Augusto tinha olhos azuis cintilantes, uma gargalhada contagiante, e ainda hoje sei de cor “O Circo desceu à Cidade” que cantávamos nas viagens, mas não suportava pieguices, e quando se zangava, zangava mesmo. Por isso se queria que nadasse, eu nadaria, engolindo o medo, agarrando-me à esperança de que no final se orgulhasse de mim! Resultou.

Entusiasmada, aprendi a mergulhar, a saltar da prancha, mais tarde a descer no escorrega e, pelo meio, a andar de bicicleta e de burro. Enquanto isto, a tia Mi geria com generosidade os efeitos secundários de ter uma piscina, coisa rara na altura, acolhendo aqueles que apareciam inesperadamente, fugindo da neblina que caia (de novo) ao fim da tarde na praia. Lembro-me bem da limonada e das fatias de pão saloio, quente e com manteiga.

Quanto a mim, tratava-me como uma filha adotiva. Que foi ficando de Verão para Verão, de ano para ano.

Aos 93 anos, está tão bonita como sempre, sem um cabelo fora do sítio, e falamos dos temas mais improváveis, espantando-me com a abertura de espírito que juraria que não tinha então, sem que deixe de lado os seus preconceitos, que agora já só me fazem rir (a mim e a ela).

Há dias voltei a encontra-la, não seria Verão se a filha adotiva não voltasse à casa paterna, e no final da conversa disse-me, sem dramas: “Sempre gostei muito de si, e vou gostar até morrer. Nesse dia, chora umas lágrimas sentidas por mim?” Jurei-lhe que sim. Mas a eternidade que conquistou em mim, não está nas lágrimas, mas nas memórias e na gratidão, que ficam sempre. Quanto às minhas netas, voltam muitas vezes à mesma piscina, acolhidas como eu fui. Faz-lhes falta, como me faz a mim, o melhor dos professores.

Jornalista e escritora
Escreve ao sábado