Um quadro de giz à entrada dá conta de que refeições servidas ao almoço e ao jantar só mesmo quando pedidas por encomenda. Daí estranharmos o ar atarefado de Luísa a meio da tarde, dividindo o tempo entre a esplanada e a cozinha, de onde sai um cheirinho que põe de lado a hipótese deste Central só servir café.
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Passamos a fronteira do balcão e entramos no local onde a magia acontece. Na cozinha de Luísa estão quatro panelas ao lume e a curiosidade faz-nos levantar o testo a cada uma delas. Bifanas, rojões, mão de vaca com grão e papas de sarrabulho completam este quarteto fantástico. De uma frigideira ao lado saem hambúrgueres e batatas fritas, para agradar aos paladares mais modernos. Tendo em conta que o relógio já está próximo das 16h, parece-nos que esta ementa de petiscos não faz parte dos restos do almoço nem antecipa o jantar. “Ó menina, então não ‘tá a ver que é para o lanche?” O que vemos, na verdade, são travessas de sarrabulho a encher as mesas e os olhares deliciados com o pousar das bifanas no balcão. “Isto é pessoal de alimento”, brinca.
Não se sabe se é o verde, se são as montanhas ou se são os pratos fartos aos quais poucos conseguem resistir, mas a verdade é que os ares minhotos dão fome, “mesmo a quem vem de fora”, garante Albertino Borges, que não resiste a entrar na conversa para contar a sua experiência atrás de um balcão. Na altura em que Vilar de Mouros era terra de festival, ficava responsável por uma barraquinha de petiscos e bebidas. “Apanhava-os esfomeados à saída do festival e vendia aos cem litros de caldo verde em meia hora”, conta.
Não há Vilar sem festival Basta lançar para o ar a palavra “festival” para que os suspiros saudosos se repitam em forma de contágio. Luísa pegou no café dia 14 de Junho e a 16 de Julho arrancaram os quatro dias de Woodstock em versão portuguesa. “Vendi 40 quilos de café e 30 barris de cerveja”, conta Luísa, lembrando uma esplanada cheia de quem muitas vezes não trocava as cadeiras do Central pelo relvado do recinto. “Tenho a noção de que se não fechássemos as portas, o pessoal nunca saía daqui.”
Todos os habitantes da aldeia tinham direito a passe geral e praticamente todos faziam questão de o aproveitar. Apesar de as vozes se unirem quando é hora de elogiar o festival, na hora de escolher os melhores concertos o consenso não é tão imediato. Os 57 anos de Maria Bernardete faz com que prefira Joe Cocker e José Cid; já os 26 de Marlene Araújo fazem com o top três de concertos seja formado por Sepultura, Guano Apes e Him. Conflitos geracionais à parte, ver a aldeia cheia era, para os residentes, o equivalente a viver num Pavilhão Atlântico esgotado. “Era aqui gente que nem se podia andar, era uma alegria”, conta Bernardete, que teve o privilégio de estar presente no primeiro festival, em 71. “Era muito pequenina, mas lembro-me de ter sido o meu pai a ajudar a montar um dos palcos.” Apesar de mais nova, as memórias de Marlene não são tão claras. “Havia noites que nem me lembrava do caminho para casa e olhe que eu moro mesmo perto do recinto.” Embora as lembranças se tornem menos nítidas com o avançar da noite, há uma que não esquece, talvez, arriscamos nós, por ter acontecido ainda durante o dia. “Uma tarde, decidi atalhar por um campo de milho para chegar mais rápido ao recinto. Foi aí que ouvi uns gritos desesperados.” Os copos pousam no balcão, as bifanas aguardam pela próxima trinca e o cigarro fica adiado uns minutos. Com todos os olhares do Central em si, Marlene continua a história. “Segui os gritos até chegar a uma miúda de 16 anos em pleno trabalho de parto. Estava sozinha porque o namorado tinha acabado com ela.” Marlene só teve tempo de chamar a Cruz Vermelha do festival e o bebé acabou por nascer já no hospital.
Terra com íman Apesar de ninguém no país conseguir pensar em Vilar de Mouros sem fazer uma associação ao festival, quem lá vive garante que não faltam outros chamarizes. “Olhe eu”, diz Albertino com as mãos apontadas para o peito, “bastou-me passar cá quatro verões para de cá nunca mais sair”. Estava em França a trabalhar quando se deu o 25 de Abril, altura em que achou que devia voltar. “Mal sabia eu que o pior ainda estava para vir. Toda a gente dizia que Salazar era ladrão, mas saiu de lá pobre depois de mais de 30 anos. Estes estão lá quatro anos e saem de lá ricos.” Apesar dos lamentos de quem se lembra de uma vida mais desafogada, não se arrepende de ter voltado para Portugal, muito menos de ter escolhido uma mulher de Vilar para casar. “Esta terra tem um íman que nos prende”, garante. E se a terra tem poderes mágicos, o Central tem poderes agregadores. “Seja a que horas for que vier cá, sei que vou encontrar amigos”, conta Albertino. Do balcão, Bernardete faz sinal de concordância. “Mesmo quando venho sozinha, nunca me sinto só, há sempre alguém com quem falar, mais não seja com a dona.” Luísa sorri com os elogios, larga o pano de cozinha que traz nas mãos e pousa os cotovelos no balcão. “Faço isto com gosto, não há segredos.” Acreditamos que a simpatia não tenha truque, mas tendo em conta a quantidade de pratos que não param de sair da cozinha, não duvidamos que é nos temperos que Luísa faz magia.