É preciso tempo mas o cancro não trava a maternidade

É preciso tempo mas o cancro não trava a maternidade


É tecnicamente possível mas faltam meios, considera Luís Graça. 


“Muitas vezes, o que acontece é que somos chamados para o tratamento em cima da hora.” Mário de Sousa, especialista em medicina da reprodução, caracteriza deste modo a maioria dos casos em que é chamado para recolhas em mulheres com cancro. “O nosso problema é conseguir apanhar a pessoa antes de começar a efectuar o tratamento”, conta, lembrando que o primeiro caso em que foi chamado de urgência era o de uma mulher cujo tratamento começava no dia seguinte: “Neste caso, não há possibilidades, mas se for atempado pode--se estimular um pouco o ovário e ter tempo para retirar ovócitos. Mas esse é um processo que tem de ser feito pelo menos com um mês de antecedência.”

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Ao i, o especialista explica que a recolha de ovócitos é possível seja qual for o tipo de cancro de que a mulher sofra. Deste modo, os casos de cancro nos ovários não fazem automaticamente com que a mulher deixe de ser candidata: “Se o cancro do ovário for só de um e se o outro estiver disponível, podemos usar o saudável. Nem sempre o cancro do ovário é bilateral”, esclarece. Qualquer mulher que se submeta a quimio ou radioterapia pode submeter-se a este procedimento mas, mais uma vez, “o problema é conseguir chegar à pessoa a tempo”, admite.

A preservação de ovócitos em mulheres que não têm cancro é tecnicamente uma prática realizada nos hospitais portugueses, e Luís Graça, director do departamento do serviço de obstetrícia do Hospital de Santa Maria, defende que deve ser alargada às mulheres com doenças oncológicas. Até porque um “diagnóstico de cancro não significa um diagnóstico de morte ou de um resto de vida incapacitante”. E questiona: “Se a preservação de ovócitos em mulheres que não têm cancro já se faz, por que razão não se há-de poder fazer em mulheres que têm cancro?”

FALTA DE VERBAS Em hospitais públicos, a preservação de ovócitos em mulheres com doenças oncológicas é uma prática “perfeitamente possível de se fazer”. Para Luís Graça, a questão prende-se com as condições que existem no Serviço Nacional de Saúde (SNS) para se criar uma rede pública para estes casos: “É uma coisa que é tecnicamente possível mas, naturalmente, aumentando o número de casos é preciso também aumentar instalações e número de técnicos”, considera.

No SNS, a capacidade de resposta para todos os casos de infertilidade em que é necessário usar técnicas de procriação medicamente assistida, nomeadamente a preservação de ovócitos, “é inferior às necessidades”, revela, dando o exemplo do Santa Maria: “O nosso laboratório não terá capacidade de lidar com muitos mais casos do que aqueles que já temos neste momento.” 

Já para o bastonário da Ordem dos Médicos, “não é assim que se deve discutir a questão”. José Manuel Silva defende que o que se deve debater é se a medida é necessária ou não: “Para mim, é positiva e necessária. Não conheço qual é o nível de estruturas que temos para isso mas, se não tivermos estruturas suficientes, devem ser criadas.” 
A Assembleia da República emitiu uma recomendação ao governo, na passada segunda-feira, no sentido de criar um programa de criopreservação dos ovócitos das mulheres com doença oncológica. 

Luís Graça defende que esta prática é um “passo adiante”, mas é preciso ter “capacidade para o fazer”: “É necessária uma ampliação [do laboratório] para termos mais capacidade de resposta a estes e outros casos. Vamos ver se há capacidade de investimento do SNS para que os laboratórios que são bons e têm grande taxa de sucesso sejam ampliados para poder responder a mais este desafio”, afirma. 

Para o director do departamento do serviço de obstetrícia do hospital de Santa Maria, os médicos têm o cuidado de alertar estas mulheres para a hipótese da criopreservação de ovócitos. “É daquelas coisas de que já há uma década se fala muito e se tem essa preocupação.” Já Mário de Sousa considera que “há uma franca evolução” neste campo, mas que “ainda há muitos ginecologistas e oncologistas que vêem esta questão como uma fatalidade da natureza que a mulher tem de aceitar”. E não chamam a atenção suficiente para a questão. “Mas as coisas estão a mudar rapidamente”, remata. 

Contactada pelo i, a vice-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), Lucília Nunes, refere que quando as situações clínicas conduzem – pela própria terapêutica – “a infertilidade, a irradiação ou ablação de órgãos por condição oncológica” é justificável a colheita de ovócitos viáveis “antes da intervenção terapêutica”. Sobre questões de procriação medicamente assistida, o CNECV remete para um parecer de 2004, “sem prejuízo de nova reflexão do Conselho caso tal venha a justificar-se”.