Norman Rush. “Já fui um escritor confuso, o meu herói foi James Joyce”

Norman Rush. “Já fui um escritor confuso, o meu herói foi James Joyce”


Agora que o primeiro romance, “Acasalamento”, foi publicado em Portugal, Falámos com o autor americano – por escrito, teve de ser.


“Acasalamento” conta a história da antropóloga americana Karen Ann, em trabalho no Botsuana, enamorada por um colega de trabalho, Nelson Denoon, que fundou uma comunidade secreta no meio doKalahari. Aqui Denoon é o único homem e a narrativa – elaborada com uma minúcia expansiva, genial, sem nunca estar fora do alcance de um comum mortal – é sobre sexo mas também sobre geopolítica, costumes, tradições e calor, muito calor. Tudo isto como se estivéssemos dentro da mente da própria Karen Ann, numa interpretação da mente feminina que lhe valeu tantas críticas como elogios. “Acasalamento” é o primeiro romance de Norman Rush, um herói americano que viveu cinco anos em África para escrever sobre o continente sempre que pode. Publicado em 1991, só agora foi traduzido em português, mas entretanto Rush só escreveu mais dois livros: “Mortals”, de 2003, e “Corpos Subtis”, de 2013. E ainda assim pede que este pergunta-resposta seja feito através de email, por escrito.Assim seja.

Porque decidiu responder por email em vez de fazer uma entrevista por telefone? Porque prefere escrever sempre que pode?
Sou esquisito ao telefone, ainda mais quando faço entrevistas. Leio-as mais tarde e consigo ver que por causa do meu nervosismo acabei por transmitir ideias enigmáticas e até enganosas em relação ao que realmente tinha para dizer.
O seu primeiro romance foi agora publicado pela primeira vez em Portugal. Isto não lhe parece estranho, quando estamos a falar de um livro que foi lançado originalmente em 1991?
Bom, a única coisa que sentia sobre esta publicação em Portugal era prazer. Mas isso foi até ter lido esta pergunta. Pergunto-me se não deveria ter estado revoltado com o país durante todos estes anos.
Tem uma média de dez anos entre livros e só publicou quatro. Não leve a mal esta pergunta, mas o que faz para viver?
Já ganhei a vida de diferentes maneiras, de apanhar cerejas a descarregar camiões que transportavam molhos de “New York Times” para os pontos de venda, durante a madrugada. Estive empregado como responsável pelas batatas fritas na cozinha de um restaurante quase durante 30 minutos. Fiz as coisas que habitualmente os escritores fazem, dei aulas, fiz revisão de texto… O trabalho que fiz durante mais tempo foi como alfarrabista. A Elsa trouxe quase sempre dinheiro para casa e entre os dois recebemos três pequenas mas importantes heranças, que foram uma grande ajuda. A história profissional dela é tão variada como a minha mas foi durante muito tempo designer têxtil. Trabalhámos no Botsuana, em África, durante cinco anos como directores do programa do Peace Corps [organização de voluntariado gerida pelo governo dos EUA]. Tivemos alguns prémios, uns bónus, direitos de livros vendidos para filmes que acabaram por não resultar em filmes… Enfim, percebemos cedo que para nós o lema mas inteligente seria “manter baixas as expectativas”. Vivemos durante 53 anos menos os cinco de África numa pequena casa numa quinta construída em 1840. Primeiro alugámo-la por 55 dólares por mês, depois comprámo-la, mais os quase oito mil metros quadrados de terreno, tudo por 20 mil dólares. O nosso carro é um Saturn de 1998.
Já agora, porque é que demora tanto tempo a terminar um livro?
Essas perguntas são dolorosas. Em minha defesa tenho de confessar que o meu primeiro romance demorou uns meros cinco anos a escrever (e apenas dois a ser rejeitado por toda a gente e respectivos irmãos). No Botsuana não escrevi, o trabalho consumia-me todo o tempo. Mas consegui juntar muita informação para escrita futura. Bom, na verdade, no quinto ano em África escrevi um conto, “Bruns”, que foi publicado na “New Yorker” e que se transformou na primeira história de “Whites” [livro de contos de 1986, o primeiro de Norman Rush]. Curiosamente, a voz do narrador de “Bruns” tornou-se a voz que narra “Acasalamento”. Os intervalos posteriores na minha história livreira podem ser explicadas por demónios (OK, neuroses) – perfeccionismo, ambição exagerada, falsas partidas. E depois a vida…
O que faz quando não está a escrever? Ou está sempre a escrever?
Leio. Não tenho passatempos. A velha casa onde vivemos precisa de algumas reparações. Gosto de andar na zona em volta da casa enquanto penso no que acabei de ler. Vemos ou falamos com amigos e a família, envio emails. Costumávamos ir até Manhattan uma ou duas vezes por semana, agora é mais uma vez por mês. De novo, vemos amigos, marcamos presença em eventos culturais ou literários ou simplesmente passamos um bom bocado. Mas talvez tenha um passatempo: ver o fim do mundo que vai passando em directo na televisão. Ou o mundo que conhecia. E vejo outras coisas. Ultimamente tenho andado fascinado pelo irresistível Donald Trump. E vejo dois reality shows.
Lembra-se de quando decidiu ser escritor? Foi num momento específico? Foi alguém em particular, heróis literários?
O meu pai foi um escritor falhado. Escreveu poesia sob o nome Slienus Starset. Também era socialista e sindicalista. Durante a Grande Depressão fui concebido inesperadamente. Depois de nascer ele tornou-se vendedor. Soube disto tudo bastante cedo e isso fez parte de uma espécie de herança que recebi. O meu pai também era um bibliófilo. Tinha uma grande colecção de clássicos modernos – Joyce, Conrad, Lawrence, Céline, Zola… Comecei a ler aos 11, 12 anos. Isso agradou-lhe. Já fui um escritor confuso, o meu herói foi James Joyce.
O que sente quando alguém o trata (e já muitos o fizeram) como “um dos mais importantes escritores americanos”?
Dá-me vontade de pôr o nome dessas pessoas no meu testamento.
Dedica todos os livros à sua mulher, Elsa. Ela tem também alguma influência na sua escrita, no resultado final dos livros?
Deixe-me contar todas as maneiras… Ela é a minha primeira leitora e editora. Tem muita responsabilidade no curso que a minha escrita tomou, no distanciamento da minha obsessão inicial com o experimentalismo literário.
Em “Acasalamento” escreve a história partindo do ponto de vista de uma mulher. Não foi complicada?
Preparou-se de alguma maneira?

Tentei escrever “Acasalamento” na terceira pessoa do masculino e não cheguei a lado nenhum. Queria um narrador com uma visão cómica da vida, uma mente incansável, inteligente, céptica, e acima de tudo aberta, como a maioria das mentes masculinas não são. Os meus 60 anos de casamento com a Elsa podem ser vistos como uma aprendizagem das formas distintas como a mente de Karen Ann trabalha. E já tinha explorado essa voz interior em “Bruns”, já me era familiar (antes de o nome Karen Ann aparecer em “Mortals”, o nosso filho tratava a narradora de “Acasalamento” por Elsa).
Sabe se os leitores de “Acasalamento” são sobretudo mulheres? Ou homens?
O corpo de leitores para toda a ficção consiste sobretudo em mulheres, ainda que as cartas que recebo desde que “Acasalamento” foi publicado sejam enviadas tanto por homens como por mulheres, de forma equilibrada. Agora o que se passa entre os homens e a ficção? Não faço ideia, mas tenho pensado muito nisso. Noutros tempos não havia esta divisão na leitura de ficção séria.
Viveu no Botsuana durante cinco anos e escreveu sobre o país em dois livros diferentes. Foi o Botsuana que o fascinou em particular ou África em geral?
Foi África e foi o Botsuana. Ainda estou a tentar compreender algumas coisas que vi em África. Fiquei intrigado quando nos destacaram para o Botsuana, que era o país africano mais próximo do modelo de evolução civilizacional mais popular no mundo ocidental. Estava a desenvolver uma classe média, era respeitado pela independência da justiça e da comunicação social, tinha eleições regulares e era pró-capitalista. Mas debaixo desta estrutura era complexo e estranho para mim, em muitas coisas. Além disso, a supremacia branca no Sul de África estava no fim. Havia tanto a acontecer… Era um cenário muito rico em eventos e personagens.
O livro foi publicado pela primeira vez há 24 anos. Já o releu entretanto?
Já, e confesso que me deixa orgulhoso.