Para os lados da Lagoa não se fala noutra coisa. Basta ver Ronaldo, um jardineiro da câmara aposentado que vive numa das novas moradias em banda de habitação social desta pequena cidade da ilha de São Miguel, nos Açores. Mal vê chegar gente de fora aproveita para vir dizer o que pensa sobre a recente obra de Freddy Sam para o festival de arte pública Walk&Talk, que terminou no sábado. “Isto por mim saía aquele amarelo”, diz — ou pelo menos achamos que diz ao tentar decifrar-lhe o sotaque. “Bem, eles é que sabem, eu para mim não acho graça, sem aquele amarelo ficava mais bonito.” De qualquer forma, se quisessem fazer o mesmo na sua casa “também deixava”.
“Aquele amarelo” é uma faixa dourada sobre o olhar dos três rapazes da Lagoa que o artista sul-africano escolheu pintar de costas, voltados para o mar, a casa deles. Rodrigo e João, irmãos, e Cláudio, um vizinho, todos rapazes dali. Ronaldo lá nos indica onde fica a casa dos rapazes, a mesma que acolheu Ricky, como todos o tratam, durante os dias em que trabalhou na Lagoa. É mesmo Graça, a matriarca desta família de oito (quatro filhos, uma nora e dois netos, todos na mesma casa), que nos explica que Freddy Sam é “nome artístico, uma homenagem do Ricky (Lee Gordon) aos dois avós”.
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Graça, que é empregada doméstica e não fala inglês, aprendeu a cozinhar pratos vegetarianos durante estes dias. “Fazia-lhe umas saladas, uns bolinhos” — todos os dias lhe fazia um bolo. “A gente arranjava a casa, fazia as comidas, e no fim do dia sentávamo-nos ali a ver”, conta. “Sinceramente nunca tinha visto ninguém assim a pintar um mural. E ver tudo ser feito assim de raiz, com os meus filhos lá… O trabalho do Rodrigo era ao fim do dia, a lavar os pincéis, ele dizia-lhe: ‘Rodrigo, clean’.”
Só João, o mais velho, 20 anos, não pôde assistir ao processo porque estava no mar. Como tantos outros rapazes desta cidade na costa sul de São Miguel, João é pescador.
Havíamos de encontrá-lo logo a seguir no Porto dos Carneiros, quando uns dez homens se juntavam à volta da obra de Brad Downey: uma esfera em vime construída com a ajuda do sr. João, um dos artesãos convidados para as residências de artesanato, com garrafas de água que encheu com o seu próprio ar, atirada para o meio do mar presa a uma pedra onde ficará até se desintegrar. Chamou-lhe “Volta a vir”, o nome do barco em que foi com Paulinho, o capitão, atirá-la ao mar.
João e Fátima Andrade, mestres na arte do vime e dos bordados, e as tecedeiras Veneranda, Grinoalda, Maria e Ricarda passaram as últimas semanas a trabalhar com designers nas residências de artesanato, coordenadas por Miguel Flor, na oficina da galeria do Walk&Talk, em Ponta Delgada. Foi o segundo ano destas residências no Walk&Talk, o primeiro com designers convidados.
Enquanto o sr. João engendrava formas de construir novos objectos em vime, como gambiarras, e as tecedeiras terminavam para a residência da designer Célia Esteves, a criadora da GUR, uma série de dez tapetes sobre o aparecimento e desaparecimento da ilha Sabrina, que se formou com uma erupção vulcânica no século XIX mas que, como tantas outras, acabou por desaparecer, vamos até ao norte da ilha, a Rabo de Peixe, uma vila piscatória tida como uma das mais pobres da Europa, que Vhils decide voltar a colocar no roteiro do festival, com uma peça diferente do habitual
Num estaleiro voltado para o mar, Alexandre Farto trabalhou durante cinco dias num barco com 50 anos que, segundo o artista, já teve vários acrescentos e já passou por todos os capitães dali. Um pedido antigo que este ano pôde finalmente concretizar, com a cedência de um barco que ia para abate por já não poder navegar. Em vez disso, Leonardo, assim se chama o barco, ficará exposto junto ao porto, ali mesmo em Rabo de Peixe, com os rostos dos pescadores que Vhils fotografou no ano passado cravados. Um a olhar para o mar, outro para terra, e outro em frente, para o futuro.
Da arte urbana para dentro de portas, o Walk&Talk vai fazendo o percurso que, dizem Jesse James e Diana Sousa, que há cinco anos começaram o festival, é o percurso que deve ser feito. Primeiro na rua, onde confrontou a ilha com a arte, e agora num trabalho mais próximo da comunidade local. No encerramento do festival, onde foram apresentados os resultados das residências artísticas, foi anunciada a criação de uma marca para comercializar os produtos criados entre os designers e os artesãos.