Primeiro não se acredita. Julga-se que a história está mal contada. Como pode ser possível que, a propósito de nada e a pedido de ninguém, uma sentença judicial de primeira instância decrete que os pais de uma criança de 12 anos não possam colocar fotografias da filha nas redes sociais, leia-se Facebook e afins? E, mais estranho ainda – afinal sempre são três cabeças a pensar –, que a decisão tenha sido confirmada pelos desembargadores da Relação de Évora?
Talvez as imagens colocadas por pai ou mãe incendiassem constantemente discussões e a proibição seja preventiva e pedagógica. Espreita-se o acórdão da Relação (público) e lá está uma referência a um ambiente de desconfiança da parte da mãe, que parece afectar a relação entre a criança e o pai. Pronto, deve ser isso. Já vimos todos suficientes divórcios litigiosos para imaginarmos qualquer coisa como “porque é que a deixaste tomar banho na piscina quando sabes que está constipada?”, escrito num SMS segundos depois de a selfie ter sido postada, para na semana ser a vez de o outro retaliar: “Vi que estás com ela no Jardim Zoológico. Não sabes que é alérgica ao pelo dos leões?” E por aí adiante, minuto a minuto do fim-de–semana “do pai” e do fim-de-semana “da mãe”.
Contudo, quando se procura uma argumentação neste sentido no acórdão da Relação, nada. Afinal, o tribunal, citando a “extensa e bem fundamentada resposta” do MP, considera que esta imposição não espanta ninguém: “Ela é uma obrigação dos pais, tão natural quanto a de garantir o sustento, a saúde e a educação dos filhos e o respeito pelos demais direitos, designadamente o direito à imagem e à reserva da vida privada (art.o 79.o e 80.o do CC).” Mas, sobretudo, porque ao expô-los nas redes sociais estão a torná-los presas de predadores sexuais e pedófilos.
A partir daí, com todo o respeito, o raciocínio parece perder o rumo, e nem o “juizês” consegue disfarçar a fragilidade do argumento e a falta de conhecimento que lhes permita distinguir o trigo do joio. “Porquanto é sabido”, neste caso, “que muitos predadores sexuais e pedófilos usam essas redes para melhor atingirem os seus intentos”, não parece que chegue. Não faltam citações de convenções internacionais, mas que parecem completamente ao lado do que está em discussão, ou será que os horrendos crimes que procuram evitar, como o recrutamento ou oferta de crianças para fins de prostituição, de produção de material pornográfico ou de espectáculos pornográficos, a venda de crianças para exploração sexual, entre outros dos citados no acórdão, decorrem do facto de pais postarem a fotografia do filho a soprar um bolo de velas?
O que não se entende, no final, é o que vai acontecer depois disto. Se, como argumenta o tribunal, todos os pais estão obrigados a esta imposição, dando como provado que atenta contra os direitos das crianças e as põe em perigo, começamos já na segunda-feira a denunciar-nos uns aos outros? As comissões de protecção abrem processos? E, já agora, se os pais se deixarem fotografar com os filhos para uma revista, também conta, ou os pedófilos não lêem em papel? E se forem actores numa telenovela? Ou surgirem no cartaz do teatro da escola, afixado nas montras dos estabelecimentos vizinhos?!!
Graça fácil à parte, que levou até a perguntar se a sentença resulta do susto de a “rataria” ter infiltrado páginas como a dos Magistrados Unidos VIP, parece de facto estranho, e pouco pedagógico, que se aproveite um processo de regulação de responsabilidades parentais, ainda por cima agitado, para iniciar uma cruzada emotiva contra as redes sociais – mas mais do que isso, para judicializar mais um bocadinho a vida de pais e filhos.
Jornalista e escritora
Escreve ao sábado