Garrett McNamara. “Escrevi num papel o objectivo: voltar a surfar. Depois fechei a loja”

Garrett McNamara. “Escrevi num papel o objectivo: voltar a surfar. Depois fechei a loja”


A vida do big wave rider mais famoso em Portugal deu algumas voltas. Da Nazaré a um glaciar no Alasca, pouco lhe falta fazer.


Zen. Poucos associam esta palavra a uma actividade que implica descer massas de água com várias dezenas de metros apenas com uma prancha debaixo dos pés. Para muitos é o expoente da adrenalina. Para Garrett McNamara é uma forma de estar no momento, entrar numa experiência zen. O_big wave rider norte-americano incluiu a Nazaré no mapa mundial das ondas grandes. Foi aí que se casou, é aí que volta várias vezes ao ano. Já é uma celebridade em Portugal. Quando o entrevistamos na pequena vila piscatória isso é notório. Assim que põe um pé na rua, todos querem falar com ele ou tirar uma foto ao seu lado. Este mês estará por cá a ensinar crianças e adultos a surfar, no projecto Buondi Surf Sessions. Aproveitámos para conhecer melhor a sua história, a da loja de surf que lhe abriu os olhos para não se afastar do mar ou a do louco projecto de apanhar uma onda formada pela queda de glaciares.

 

A paixão pelo surf começou no Havai ou ainda na Califórnia?

Não me lembro de ter surfado na Califórnia mas um amigo da minha mãe disse que me levou a surfar quando eu tinha cinco anos. Estávamos sempre a ir à praia, a brincar na água. Por isso devo ter surfado, só que não me lembro. A primeira memória foi no Havai, aos 11 anos, e tornou-se a minha paixão.

Como foi a sua carreira profissional?

Surfei profissionalmente mas era mais um soulsurfer, não precisava de entrar em competições. Criei um nicho no mercado japonês como big wave rider, e depois desenvolveu-se para o Brasil. Como em tudo na vida, se tiveres um nicho, arranjas uma forma de as pessoas te conhecerem e receberem. A partir daí podes criar o que quiseres.

Mas a dada altura parou de surfar.

Tive a sorte de morar no Havai, onde trabalhava com empresas japonesas. Falo japonês, por isso tinha boas relações com eles, os meus patrocinadores continuaram a trabalhar comigo. Aos 30 anos as coisas começaram a abrandar e eu comecei a pensar em como me havia de reformar. Decidi abrir uma surfshop, assim continuava envolvido no surf. Conduzia todos os dias para o trabalho, a olhar para as ondas, e não estava feliz. Por isso escrevi num papel o meu objectivo: keep surfing [continuar a surfar]. Tinha uns 33 anos e o objectivo era esse. Fiz um mapa com tudo o que precisava de fazer. O principal era vencer um grande evento. Treinei, treinei, comi bem. Imaginei–me a ganhar. E ganhei. Eram ondas de 20 metros, o maior evento em que participei (em Jaws, Maui), com um prémio de 68 mil euros. Recomecei a carreira: paguei todas as contas da loja, fechei-a e procurei novos patrocinadores.

Como surgiu essa forte ligação ao Japão?

Quando éramos miúdos, o nosso pico favorito estava cheio de japoneses. Eles vinham todos os anos e os locais não gostavam por causa do crowd. Em vez de nos zangarmos, tornámo-nos amigos deles e aprendemos a falar japonês. Depois comecei a trabalhar com o Japão. Em vez de ficar chateado e olhar para a parte negativa, tornei-a algo positivo. Cada desafio é uma oportunidade para crescer. Não me apercebi na altura, mas na minha vida tento sempre tornar o negativo positivo. Até que comecei a escrever os meus objectivos e vi o filme “The Secret”. Wow, é isto que tenho feito, pensei. Acho que a minha mãe nos deu tanta liberdade que conseguimos descobrir as coisas por nós, de forma natural.

Fala japonês fluente?

[Diz uma frase em japonês.] Falo o suficiente, o meu japonês é melhor que o meu português. No Japão só falam japonês. Havia japoneses que ficavam em minha casa, era uma oportunidade para aprender dia e noite. Aqui todos falam inglês…

Era um miúdo rebelde?

Não achava que me ia tornar surfista profissional, achava que não era suficientemente bom, surfava apenas pela paixão. Divertia-me, não era rebelde, mas tínhamos a sorte de fazer o que queríamos. Éramos livres, faltávamos à escola para surfar. Fizemos muitas coisas que eu como pai teria feito de forma diferente. Mas felizmente resultou.

É verdade que ao início tinha medo de ondas grandes?

Até aos 16 anos tinha. Depois um amigo forçou-me a entrar num dia grande. Emprestou-me a prancha perfeita, deu–me alguns conselhos. Entrei, apanhei algumas e de repente estava enamorado pelas ondas grandes. Aos 11 apaixonei-me pelo surf, aos 16 pelas ondas grandes. Antes disso nem me queria aproximar delas.

Como se prepara algo como o Glacier Project?

Sendo do Havai, não estamos habituados a fatos ou a água fria. Isso foi um desafio enorme. Fomos lá um ano antes e a primeira coisa que queria fazer era meter o pé na água, perceber se conseguia aguentar. Percebi que dava, com um bom fato. Depois queríamos ver as ondas que se formavam quando caíam pedaços grandes de gelo. Fizemos toda a pesquisa. Tal como na Nazaré, uma pessoa de lá ajudou-nos. Era um tipo que vivia perto do glaciar, disse-nos de onde vinha a água, todos os perigos e o que enfrentaríamos. Tivemos muita sorte. Achávamos que tínhamos tudo planeado perfeitamente. Voltámos no ano seguinte, de 1 a 10 Agosto, o dia do meu aniversário.

Disse que foi uma experiência aterradora.

No primeiro dia que entrámos na água não foi nada do que imaginara, foi assustador, ver as quedas de gelo, tentar apanhar a onda. Chorei, estava preparado para desistir. “Não vale a pena, vamos para casa.” Eu e o meu parceiro, que normalmente é o mais conservador, enquanto eu sou o tipo do “let’s go”, mudámos de papel. Ele era tipo “vamos lá, somos capazes”. Convenceu-me a ficar, ficámos confortáveis, percebemos até onde poderíamos ir, até que conseguimos surfar. Foi divertido.

Que dificuldades venceram?

A temperatura da água era entre 0oC e 1oC. De vez em quando tínhamos de sair e aquecer-nos perto do fogo. O meu parceiro aproximou o rabo do fogo e fez um buraco no fato de ficar lá tanto tempo. No último dia estive na água à espera, durante quatro horas, pela onda certa. A primeira proporcionou-me o sentimento mais intenso que já vivi. Estou a surfar esta onda pequena, agarrado à corda [puxado pelo jetski], por isso tenho uma ligação. Depois larguei e há um glaciar gigante por cima de mim que me pode esmagar a qualquer instante. Não é como cair numa onda, aí sabes que vens ao de cima, mais cedo ou mais tarde. Se fosse o glaciar, acabava aí. A adrenalina era tão intensa, tão esmagadora, fez-me perceber a que ponto me sinto à vontade no oceano, o quanto amo o mar. Percebi que pela recompensa o risco não valia a pena. Era por isso que queria voltar a casa. No fim enfrentámos os nossos medos, foi cool, mas o risco não valia a pena, estivemos muito perto da morte todo aquele tempo.

Depois disso a Nazaré já não lhe mete medo?

Estou confortável, mas aqui é outra situação única, nova. As ondas juntam-se, não acontece em mais lado nenhum. Tivemos de estudar muito, treinar, estar concentrados. É a onda mais intensa porque há muito a acontecer e não é igual duas vezes, é sempre diferente, como no glaciar.

O Hugo Vau disse que nenhum ser humano está preparado para a Nazaré. É o sítio mais desafiador do mundo?

É a mais desafiadora de todas as ondas grandes que já surfei. Todas as outras são num reef, o swell é quase sempre o mesmo, tens o canal, as ondas rebentam no mesmo sítio. Surfas a onda, regressas pelo canal, apanhas outra e é assim. Na Nazaré não. O canhão faz a onda rebentar de maneira diferente, o baixio faz com que elas rebentem em todo o lado. É a mais desafiadora que já experimentei. Uma similar, mas que nunca fica tão grande, é a de Puerto Escondido. Sempre disse que a Nazaré é Jaws, Puerto Escondido e Waimea, todos numa.

Como se prepara para surfar ondas grandes?

Normalmente começo a treinar no dia do meu aniversário, este ano será um dia antes, no aniversário do meu filho, a 9 de Agosto. Faço muito ioga, mas o principal é a dieta: alimentação saudável, sobretudo frutas e vegetais. Em Portugal, como o peixe é tão fresco, por vezes também como. Faço muitos alongamentos, treino com elásticos, treino de apneia (muitos exercícios diferentes), alguns pesos, corrida, natação, natação subaquática em grutas. Alguns faço todos os dias, outros só de vez em quando.

E a preparação mental?

Estou sempre pronto psicologicamente e depois o meu corpo tem de ser capaz de seguir. No dia anterior adoro meditar. Quando estivemos em Puerto Escondido, num dia grande, fiz muita meditação. Não fico agarrado de forma rígida, aceito o que o dia traz. Acordo todos os dias cedo, medito no escuro.

O que é necessário para entrar num dia grande na Nazaré?

Uma boa equipa, pessoas com os mesmos objectivos, todos bons no que fazem. Sou tão bom quanto a minha equipa. A preparação é tudo. Temos fatos com flutuadores; no mínimo são precisos dois jetskis, um para surfar, outro para a segurança. O ideal são três (dois para o resgate). Pelo menos uma pessoa na arriba com um walkie-talkie, e todos têm de ter um. O ideal é muita gente espalhada pelo local, na praia, com walkie-talkies, ambulância, bombeiros, nadadores-salvadores. É algo significativo. Num dia grande, temos entre 20 e 30 pessoas na equipa.

E as pranchas?

É muito importante. Todos os que surfam aqui, as pranchas não funcionam. Vamos muito depressa, não conseguem perceber o que se passa, basicamente estão a tentar sobreviver. A prancha que desenvolvi com a Mercedes é a melhor para a Nazaré. Tem um nose flexível, absorve o atrito das irregularidades da onda, as quilhas são direitas, estão preparadas para ir a full speed. As irregularidades da onda são o maior desafio. Por isso a prancha adapta-se à onda, como um esqui. É muito pesada, tem 10 quilos.

Como é possível descer uma onda de 30 metros e dizer que é uma experiência zen?

É quando não pensas no futuro nem no passado, ficas no momento e desfrutas, é uma experiência zen. É a experiência mais maravilhosa, natural, livre. Felizmente já o fiz tantas vezes que sai com naturalidade, surfo com o coração, sinto o meu caminho. Quando estou numa onda quero entrar no tubo. Se não conseguir, não fico satisfeito.

Qual foi a situação mais difícil na Nazaré?

Todas as situações têm sido confortáveis, apesar de alguns desafios. Uma vez caí do jetski quando estava a conduzir, com um surfista atrás. Levei com algumas ondas complicadas, fiz alguns cortes, mas nada muito difícil. Desafiador mas divertido.

Quando tempo se fica debaixo de água após um wipeout numa onda grande?

Uma onda é 30, 40 segundos. Duas ondas é mau, nunca me aconteceu.

Recentemente virou-se também para o stand-up paddle?

É o melhor treino. E divertido. Podes fazê-lo em qualquer parte do mundo onde exista água: oceano, lago, rio. É maravilhoso, a nova revolução. É ainda tão pequeno comparado com o que vai ser… Ainda está a começar a crescer em Portugal e está a crescer em todo o lado. A China não consegue produzir pranchas suficientes para a procura.

Como vê os surfistas portugueses, que se têm mandado a ondas cada vez maiores na Nazaré?

Os surfistas portugueses têm sido fantásticos. Tento ajudar ao máximo todos os que vêm à Nazaré, para que possam ter a melhor experiência. Não havia pranchas adequadas, as pessoas estão a tentar perceber o que é necessário para andar nas ondas grandes. É preciso apoio para o fazer de forma segura, ninguém tinha flutuadores. Agora, com a nova tecnologia, haverá mais picos a ser surfados. A maior evolução que vi desde que apanhámos uma onda grande, e depois de cinco anos de notícias da Nazaré, é que todas as crianças em Portugal querem experimentar o surf. As escolas de surf estão esgotadas. No futuro Portugal terá possivelmente o maior número de surfistas per capita do mundo. Muito disso, acredito, por causa da Nazaré. Os portugueses estão orgulhosos de ter a maior onda do mundo.

Enquanto surfista, como vê a protecção da natureza?

Assim que começas a surfar começas a estar mais em contacto com a natureza, mais em sintonia com o que se passa, sentes uma responsabilidade. Queres um oceano limpo, começas a pesquisar… Quanto mais souberes sobre a comida que ingeres, a qualidade da água, as coisas diferentes que podem levar a um mundo melhor, melhor percebes o que deves fazer. O meu conselho é este: pesquisem, a informação está toda aí fora. Aprendam. Adoro trabalhar com as crianças porque elas são o futuro. Se lhes ensinarmos as coisas certas, como proteger o oceano e a terra, manter os pesticidas afastados da comida. É o teu corpo, o teu futuro. Queres andar de um lado para o outro aos 80 anos ou ficar todo lixado? Depende do que comes. O mesmo no mar. Queres manter muito peixe e comida, garantir que ficas limpo.

O que tirou da experiência com a Surfers Healing?

Corríamos todo o país sempre que podíamos. É uma paixão intensa, adoramos partilhá-la com toda a gente. Há pessoas que perdem todos os sonhos do que os filhos poderiam fazer assim que lhes é diagnosticado autismo. Mas quando as levamos a surfar, é a experiência mais maravilhosa e emotiva. Apanhamos uma onda com a criança, os pais estão a chorar, nós choramos, os miúdos choram. Recarrega as minhas baterias para vir aqui e surfar novamente. Faz-me apreciar tudo melhor.

Como vão ser as Buondi Surf Sessions?

Levamos as crianças a surfar. Às vezes estamos na água com elas e dizem-nos “olha, tão bonito”. Muitas vezes é algo de que não me tinha apercebido e fico como eles: “ohh, tão bonito.” Partilhar a experiência intensa que temos com o oceano. Vamos fazer isto por Portugal inteiro. O melhor que há é ver alguém sorrir. Faz-me sentir tão bem… pôr um sorriso na cara de alguém é a melhor experiência. Estes miúdos talvez nunca fossem surfar se não fosse o projecto.

Ouvi dizer que tinha um programa de TV na Oprah Network…

Isso foi sobre o Surfers Healing. Foi diagnosticado autismo ao filho de um grande amigo, foi assim que me envolvi. Tornou-se algo fantástico a partir daí.

Já tem novos planos para a reforma?

Estou sempre a pensar no futuro, a espalhar boas mensagens, concentrado em fazer bons projectos. O futuro aqui é ajudar os meus amigos a atingir os seus objectivos. Quem quer que escreva o seu plano e o seu mapa… digo sempre a quem trabalha comigo: “Qual é o teu objectivo? Escreve-o, faz o mapa.” Se o fizerem, trabalho com eles nesse objectivo. Se não, fico frustrado porque estão a passar pela vida sem…

Não voltou a escrever nenhum objectivo no papel?

É o mesmo: continuar a surfar, enquanto me divertir. Quando isso não acontecer, concentro-me mais no meu filho (vou fazê-lo sempre, claro). Estamos a planear levá-lo a surfar daqui a duas semanas na Florida. Vai fazer a sua primeira onda sozinho com 10 meses. A minha mulher ainda não sabe [risos]!

O limite foi atingido na Nazaré?

Não, há ondas muito maiores. Não há limite, é uma questão de as condições estarem boas e o swell atingir a altura máxima. O máximo aqui é muito maior que o que já surfámos. Mas tem a ver com tamanho, é com diversão. Não é surfar para bater recordes mas pelo amor. Se é pelo patrocinador ou pela recompensa, não é pelas razões certas. Quando o ego se mete no caminho…