José Gameiro: “Demorei a perceber que o tempo é fundamental. Melhora quase tudo”. (parte 2)

José Gameiro: “Demorei a perceber que o tempo é fundamental. Melhora quase tudo”. (parte 2)


Aos 66 anos, Gameiro gostava de nunca deixar de se sentir um miúdo.


Ultimamente quais são as queixas mais frequentes, até com a crise?

A ansiedade aumentou claramente. A depressão talvez não tenha aumentado associada a crise mas tem aumentado paulatinamente ao longo dos anos.

Disse há um ano que a crise não aumentou os problemas nos casais.

Acho que não aumentou.

Não há mais violência?

Tem aumentado a intolerância. E é certo que o número de mortes por violência doméstica já vai este ano em 30 e tal quando geralmente são 40 e tal, portanto é um número muito alto.

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Escolheu a terapia familiar por causa da experiência negativa com os seus pais?

Foi um acaso puro. Eu era interno de psiquiatria e uma vez falaram-nos de um congresso em Florença e fui com o Daniel Sampaio e o José Cardoso. Depois começámos a fazer terapia familiar em Santa Maria um pouco em auto-gestão. 

Quando vale a pena salvar um casamento?

Quando há muita zanga e muita mágoa mas ainda há o reconhecimento dos dois de que não chegou ao fim.

Isso é muito vago.

Mas muitas vezes tem de ser assim vago. As pessoas têm de querer pensar sobre o casamento e às vezes já não querem. Por outro lado, às vezes a zanga é tão grande que a pessoa está convencida de que já não gosta, e não é bem assim.

Quem tem mais vezes razão: eles ou elas?

Nisso sou completamente neutro.

É frequente os pacientes dizerem-lhe que foram traídos?

Muito, e aí a terapia tem um sucesso altíssimo. As pessoas são apanhadas e querem reconstruir a relação. À segunda vez é mais complicado mas da primeira vez o sucesso é muito grande. Em termos terapêuticos é mais fácil ultrapassar a traição do que ajudar aqueles casais que discutem por tudo e por nada.

O sexo é um problema comum?

As pessoas falam pouco de sexo. Se há problemas sexuais, como disfunções, mando para o sexólogo porque não tenho a prática diária disso. Mas de resto o sexo é uma coisa secundária. Quando a relação conjugal está mal, o sexo está mal. Não é nunca um problema isolado. Os media transformaram o sexo numa coisa obrigatória. O sexo é como beber água, como diz uma amiga minha. Para a maior parte das coisas é uma coisa normal. Isto de tem de ser não sei quantas vezes por semana, assim e assado, não é nada assim.

O que o choca mais?

O sofrimento psíquico. Mas nunca tive uma depressão a sério. Só quando a minha mãe morreu é que tive um bocadinho do sentimento do que é estar deprimido.

Não tomou nada?

Não, na maior parte das vezes no luto é apenas preciso esperar. Agora o sofrimento de alguém que não consegue ter prazer com nada, que quer morrer, tem toda a gente à volta a dizer “põe-te bom” e sente-se que nem um cão, isso é horrível. O sofrimento é o que ainda hoje mais me desperta a vontade de querer acelerar o processo. E depois há alegria de ver as pessoas melhorar.

De salvar vidas.

Não diria salvar, isso é para um amigo e colega meu que diz que abre o coração das pessoas e salva vidas.

Nunca sentiu que tivesse salvo?

Do ponto de vista de ter ajudado a que a pessoa não morresse, acho que sim. Mas salvar… Tenho essa nostalgia da medicina, também gostava de ter sido intensivista, do trabalho na urgência. Adoro andar de mota e ainda hoje tenho a fantasia de andar de mota a fazer acidentes, um pouco aquela imagem do SAMU em França.

Já não trabalha no SNS?

Não, deixei o Miguel Bombarda em 2008.

Saiu com alguma mágoa?

Saí, mas não saí por mágoa ainda que tivesse percebido que as coisas estavam a complicar. Já tinha muitos anos de serviço porque comecei cedo e saí porque estava cansado de ir todos os dias às 8h30 para o hospital.

Os casos eram mais complexos, não?

Havia a consulta normal e o internamento com os casos mais complicados. Nos últimos anos estava na enfermaria forense, com os inimputáveis.

Conseguia ter empatia com esses doentes?

Conseguia, serem doentes facilita a empatia. Não tinha qualquer dificuldade em falar com um assassino sendo um doente psicótico.

Mas a fronteira entre a maldade e a loucura não é por vezes ténue?

Sim, mas há uma história que geralmente se consegue perceber.

Estes doentes estavam em celas?

Não, já não estão há muito tempo. Tive um doente que se formou em Direito. Os doentes circulam, não estão fechados.

Não acontecia saírem e cometerem outro crime?

Não, porque estão medicados.

Há ainda uma imagem mais sinistra do Bombarda e Júlio de Matos que a que descreve. 

Comecei no Bombarda em 1985. E na altura, se me perguntassem se queria ir, teria dito que preferia ficar em Santa Maria. Hoje em dia sei que fiz bem. No início havia enfermarias abertas, camaratas, mas depois houve obras, os internamentos começaram a ser mais curtos e passou a haver hospital de dia. Não era o sítio mais agradável do mundo mas melhorou. E deixou de haver aquelas histórias de os doentes lavarem os carros dos médicos.

Havia esse aproveitamento?

Havia histórias, não sei até que ponto eram verdade, de que os doentes iam limpar as casas dos médicos e de outros funcionários ou até de o hospital controlar as pensões. 

E violência?

Isso dos eletrochoques indiscriminados não.

E entre doentes?

Todos os ambientes carcerais têm essas coisas. Havia trocas de favores, abusos sexuais, isso é inevitável. Havia débeis mentais que apareciam grávidas e casos de abuso homossexual. Mas a certa altura isso deixa de ser possível.

Ainda há muitas lacunas no país na saúde mental?

Sim. O Miguel Bombarda é fechado em 2011 e havia todo um plano de desinstitucionalização em que ainda está muito por fazer. O director do Plano da Saúde Mental Álvaro de Carvalho tem protestado que não há dinheiro.  

Quem hoje não tem dinheiro para ir ao psiquiatra particular o que faz?

Há serviços nos hospitais mas com mais tempo de espera e as consultas são marcadas com uma maior distância. Chega a ser de seis meses mesmo em casos graves, o que não é o ideal.

Voltando à crise, apanha muitos doentes furiosos?

Furiosos não diria, mas com uma grande desesperança. As pessoas não falam muito de política. Falam sobretudo delas e das relações próximas. Naturalmente há referências à crise e a sensação que tenho é que há um sentimento de que isto não vai melhorar.

Partilha esse sentimento?

Partilho. Acho que é tudo uma grande treta e não vejo solução. 

Acha que os seus filhos não vão ter futuro cá?

A minha filha está a acabar o doutoramento. É arquitecta e faz cenografia. O meu filho está no fim do ensino inglês, do IB, e vai para fora com certeza. Tenho uma grande nostalgia de nunca ter ido para o estrangeiro trabalhar. Tive uma bolsa para sair antes do 25 de Abril. Se não fosse o 25 de abril teria ido primeiro para Paris e depois para Genebra. A 23 de Abril estava na Suíça a falar para ir lá para o hospital e no dia 22 tinha estado com o Mário Soares em Paris para tentar perceber como arranjar o estatuto de exilado político, porque não queria ir para a tropa fazer a guerra. O estatuto de exilado seria favorável para fazer o internato fora e o Mário Soares disse “você tenha calma”. Já devia saber. Viajo de carro e entro em Portugal na noite de 24 para 25, até passo pelos tanques em Santarém.

Percebeu o que se passava?

Não, pensei que talvez fossem exercícios militares. Às 6 da manhã o meu pai telefona-me a dizer “tiveste azar, não devias ter entrado.” Pensava que era um golpe de direita. Bom, e depois fiquei, mas sempre tive pena de não ter ido para fora.

Porque é que não vai?

É tarde. Tenho a minha vida cá, a minha mulher tem os pais vivos, eu infelizmente não, mas é complicado. Mas acho que a malta nova, se puder ir, deve ir.

O que imagina a acontecer ao país nos próximos cinco anos?

Nada, ficamos assim.

Assim como?

Acho que o país é porreiro, a qualidade de vida é porreira para quem tem algum dinheiro. Eu não me queixo porque vivo bem. Agora uma boa parte das pessoas trabalham, trabalham e  ganham muito mal, 600 euros.

Imagina-se a viver com 600 euros?

Se tivesse de ser seria. Sempre tive o pano de fundo da família mas vivi e vivo do trabalho, fui autónomo a partir dos meus 21 anos.

Quando é mais activo politicamente?

Depois do 25 de Abril meto-me no Movimento de Esquerda Socialista (MES) e sou candidato a deputado. Há alguns convites para o PS, que recusei. Lembro-me de uma noite em que me aparece o Guterres, que foi meu colega de liceu, e o António Reis, que foi Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano.

Tambem é maçon?

Falaram-me uma vez ou duas vezes mas não gosto muito de me meter em grupos. No MES apanho o primeiro congresso com a celebre cisão e saída de Sampaio e vivo todo o PREC – nunca gostei do termo.

Porquê?

Era muito usado pela direita com um tom depreciativo e não tenho nada uma ideia depreciativa do PREC. Foi um momento muito vivo em termos políticos. Eu no 25 de Novembro estava em Cuba no Alentejo e apanhei aquilo tudo.

E ficou chateado?

Fiquei.

Mesmo tendo estado na ex-União Soviética?

Sim. A nossa ideia do que era o MES não tinha nada a ver com a União Soviética, era uma ideia romântica, de uma democracia basista. Eu não podia com o PS à frente, andava de armas na mão, a fazer treinos no Alentejo.

Que tipo de armas?

Carabinas e pistolas, não sei de onde apareciam. No dia 25 de Novembro, ocupou-se a vila. Ocupou-se… brincámos à revolução. E aquela história de que o PCP retirou à uma da manhã é verdade, ali foi claríssimo. Nós tínhamos muita força porque era o grupo de médicos que estava lá e havia uma cela do MES, e depois vamos clandestinos uns quatro dias para o Algarve porque não sabia se ia ser preso ou não.

Como foi a clandestinidade?

Fui para o hotel em Monte Gordo com uns amigos tomar banho. 

Foi uma clandestinidade fina?

Sim. Saio do MES passado uns tempos, ainda vou ao jantar do encerramento. Depois há um altura em que por razões mais afectivas trabalho com o Jorge Sampaio no PS. Eu e o Daniel Sampaio envolvemo-nos muito no grupo de saúde e depois faço a campanha das legislativas de 91 com o Jorge mas sem uma motivação politica.

Como conselheiro?

Não, estava com ele.

Dava-lhe consultas?

Não. Mas cheguei a levá-lo de avião a comícios, uma vez a Matosinhos. Depois ele convida-me para assessor na câmara de Lisboa.

O que é que falta hoje na política?

Posso estar a ser muito injusto mas falta convicção ideológica, valores. Muitas pessoas estão na política porque gostam de fazer carreira naquilo mas não por ideologia e acho o cinzentismo da actual política terrível. Arriscam pouco. Vejo a malta nova a ouvir as coisas na televisão e não estão nem aí, aquilo não lhes diz nada. Não tem nada a ver com direita ou esquerda, o paleio redondo da actual política não diz nada aos jovens.

Sabe em quem vai votar?

Nas últimas eleições abstive-me várias vezes.

Mas sendo amigo de Marcelo, não teria a tentação de votar nele se fosse candidato?

Já pensei nisso mas não o vou dizer.

Num confronto entre Guterres e Marcelo ficava no meio de dois amigos.

Pois. Mas não votaria por razões pessoais. Eu apoiei Sampaio e estive envolvido na pré-campanha para a Presidência da República por razões de amizade mas também pela seriedade e valores dele que admiro desde muito cedo. Se fosse outro amigo de direita não votaria.

Ainda brinca com comboios?

Sim. O meu pai ofereceu me o primeiro comboio elétrico aos oito anos. Finalmente há 20 anos pude dedicar uma sala no Alentejo só aos comboios. Continuo a gostar de brincar.

Os aviões são outro brinquedo?

Já usei o avião para trabalhar, para ir para o Porto, para o Alentejo. Hoje em dia é mais para ir com um amigo com quem tenho um avião a meias para ir tomar café.

Aqui à volta?

Vamos a Évora, a Coimbra, a Viseu, a Portimão.

Quanto é que sai ter um avião a meias com um amigo?

Despesas fixas, 5000 euros por ano.

O que sente quando voa?

Uma sensação incrível, então o descolar é indescritível. O aterrar em termos técnicos exige mais perícia mas o descolar é muito relaxante.

Onde é que gostava de ir?

Gostava de atravessar o Atlântico mas não me deixam. Nem à Madeira.

Quem é que não deixa?

Cá em casa [risos].

Alguma vez se arrepende de ter desistido da ideia de ser piloto comercial?

Tiro o brevet em 1986 e penso nisso mas o senhor da LAR (Linhas Aéreas Regionais) disse para eu não me meter nisso. Já era psiquiatra. Não me arrependo. Tenho doentes pilotos, amigos pilotos e posso estar o dia inteiro a falar de aviões mas a vida de piloto é um bocadinho monótona.

Como tem tempo para os seus brinquedos, a aviação, a escrita e a profissão?

E ainda durmo sestas! Hoje trabalho três dias por semana. Durmo pouco.

É um chato com o seu filho?

Ele diz que sim. Mas acho que fui mais chato com a irmã. Sou q.b.

Foi pai em jovem e na meia-idade. É muito diferente?

Sim, aos 28 e aos 48. Na altura estava noutra fase da minha vida profissional, mas sempre fui presente. Mas claro, para este tenho mais tempo.

Toda a gente devia ser pai aos 50?

Não sei, há o problema da idade. Uma pessoa não pode deixar de pensar quando é que vai desaparecer. Desde que ele nasceu que penso nisso às vezes. Mas depois há coisas em que se tem mais calma e, mesmo a nível económico, é diferente. Este miúdo viajou muito mais que a irmã. Como é que o país vai dar a volta ao problema da natalidade?

Não me parece que seja só por incentivos financeiros. Enquanto não se olhar para isto como a garantia de que teremos uma sociedade onde é mais agradável viver, não vamos lá.

Pensar nesse Portugal só de velhos preocupa-o?

Claro. Desta forma vamos acabar.

Que retrato do país lhe permite fazer o consultório?

Não diria que as pessoas estão mais doentes, mas estão mais pessimistas. Ainda que os portugueses nunca tenham sido muito optimistas. É o “vou andando.” Mas sinto que as pessoas acreditam menos em tudo. As pessoas olham para a televisão, para os políticos e já não acreditam. Não é só na política, as pessoas não acreditam em quase nada que projecte um futuro melhor.

E qual é o antidepressivo?

Não sei. Eu próprio quando penso nisso e olho para o espectro político, sendo completamente sincero, não acredito. O PS tem uma perspectiva que maquilha um pouco as coisas e a esquerda tem uma estratégia de ruptura mas a sensação que tenho é de estarmos manietados. Quem manda nisto são as Finanças.

Mas em 83 viveu um período semelhante. Como ultrapássamos?

Mobilizámo-nos e saímos da crise.

Hoje não somos capazes do mesmo?

Tenho uma ideia se calhar um bocadinho catastrófica de que a Europa, mais cedo ou mais tarde, vai afundar. E penso que este aperto que houve agora, não diria deliberado mas quase deliberado, foi para os países mais fortes terem mais tempo. Portanto os mais frágeis não têm hipótese porque a Europa vai derrocar. Eu vou muito à Ásia e basta isso para o prever.

Os direitos que ainda temos são incompatíveis com globalização?

Completamente. Vamos a Évora, entramos às quatro da tarde num restaurante e a cozinha está fechada. Isto é impensável nos EUA. Agora no dia em que acabar com o Estado Social na Europa há uma revolução, por isso temos o Estado Social a acabar de devagarinho.

Neste descambar, preferia ser um insubordinado grego ou um bem comportado português?

Assim de caras, insubordinado grego, mas não sei se não vai dar um grande buraco. Toda a gente está curiosa de ver o que acontece mas, aconteça o que acontecer, foi a primeira vez que um país da UE se revoltou contra as regras da União Europeia. Se vai acabar mal, acho que sim.

Na sua análise de psiquiatra, o que vai acontecer nas legislativas?

Eu achava impossível que ganhasse a direita depois de tudo o que aconteceu mas parece que há essa a probabilidade. Uma coisa que acho espantosa em Portugal é que deixou de haver manifestações. A malta resignou-se. As greves que há são orgânicas, dos transportes, em sectores em que é fácil. Não há nada espontâneo.

O que dá uma certa arma à direita, de dizer que o sofrimento é invenção da oposição.

Sim. E acho que o PS é um partido muito hipócrita neste momento. Nós sabemos que isto dentro da UE não tem alternativas muito diferentes, pode haver maquilhagem de alternativas. Mas as pessoas começam a olhar para isso como algo mais arriscado, a Grécia está a ajudar as pessoas a ter medo. E depois há Sócrates, que com o que disse esta semana não podia ter feito melhor para ajudar o PS.

Como vê esta abordagem de Sócrates?

Não sei se faz de propósito, mas o facto é que não ajuda. Vai defender até ao fim que está inocente. Quer ajudar-se a ele próprio – e eu não sei, se estivesse preso, se não faria o mesmo.

O que gostava que lembrassem de si?

Gostava sobretudo que os meus filhos e as pessoas com quem me dei ao longo da vida se lembrassem de mim e rissem de vez em quando.

Concorda que esse é dos melhores remédios para a vida?

Sim, gosto de humor e rio de mim próprio. E não gostava de perder esse lado de miúdo. Tenho assim um ar sério mas sinto-me um miúdo.

Tem um lado ingénuo?

Acho que sim. Não sou nada desconfiado em relação às pessoas. Também não é muito fácil criar relações próximas, as pessoas que vêm cá a casa são as mesmas há 30 anos. Mas não penso nunca que me querem prejudicar.

Nunca se riu no meio de uma consulta?

Já e já chorei. Aquilo que às vezes me faz rir é a minha imaginação visual, começo a ver a cena que a pessoa está a descrever. Começo a rir-me e tenho de me morder. 

Tem alguma pergunta que faça sempre?

Começo sempre da mesma maneira: “porque é que cá veio?”. Quando já conheço as pessoas é “como é que vai a vida?”.

Não tem uma do género “o que dizem os seus olhos?”, que desvende a pessoa?

[Risos] Vou sempre buscar as pessoas à sala de espera e, numa primeira consulta, o diagnóstico começa logo aí. Mas não adivinho o que a pessoa tem. Ainda que algumas coisas seja fácil. Nós somos muito parecidos uns com os outros.

Que viagens o marcaram?

Há as da infância. Fiz quatro cruzeiros. O do Brasil foi o mais forte. O barco estava ancorado em Santos e íamos de avião para todo o lado. Nos últimos três ou quatro dias nem quis sair do barco. Havia  curiosidade em torno dos portugueses, iam para lá as brasileiras e ficávamos a dançar na popa ao som do rádio. Mais tarde há cidades que marcam. Devo ter ido a Paris 50 vezes. Gosto muito de Nova Iorque. Gostei muito do Vietname, do Havai. E  de há uns anos para cá há a Índia. Sou um bocadinho monótono na diversidade. Quando gosto de um restaurante, vou lá muitas vezes. Quando gosto de um sítio vou lá muitas vezes. Até me fartar.

Não há nada de incompatível em ser um bon vivant e um homem de esquerda?

Acho que não. Nunca disse que era pobre.

Faz parte da esquerda caviar?

Isso da esquerda caviar não faz sentido para mim. Vivo do meu trabalho e não tenho dificuldades. Tenho uma reforma de 1600 euros e, quando algum dia não puder trabalhar, viverei com isso.

Faz 66 anos, qual é o melhor presente que lhe podem dar?

A festa de anos, vai ser sábado [hoje]. É sempre aqui.

As suas festas são conhecidas por quê?

Pelo convívio. Há pessoas que só se encontram uma vez por ano cá em casa. Também pelos bolos. Há um célebre bolo da minha mãe, de amêndoas, que os meus amigos adoram. Agora é a minha mulher que faz. 

Então nenhum presente especial, um comboio novo?

Não. Dão-me peças, é verdade, e modelos de aviões.

Não tem dificuldade em escrever a crónica semanal do “Expresso”?

Não, mas tenho quatro ou cinco adiantadas. Nunca seria capaz de escrever de véspera. Sou muito obsessivo, super pontual. Os meus doentes são seguidos ao minuto. Ao longo deste 30 e tal anos atrasei-me três ou quatro vezes. É uma rigidez horrível por isso funciono muito por antecipação. Se recebo uma conta, pago no primeiro dia.

Não parece ligar bem com o seu perfil de gostar de desfrutar da vida.

Pois, mas é só no que mete prazos e dias. Ainda hoje a minha mulher me diz que eu sou o tipo mais monótono do mundo porque chego a casa sempre à mesma hora. Saio do consultório a um quarto para as 20 e as 20h30 estou em casa.

O que leva uma pessoa ao psicólogo ou psiquiatra?

Estar aflito.

Mas porquê um ou outro?

Algumas pessoas ainda confundem mas geralmente, se acham que vão precisar de medicação,vão ao psiquiatra. Há psiquiatras e psiquiatras, há aqueles com que não se conversa muito e depois há outros, em que me incluo, em que cinco minutos é a parte médica e o resto é conversar, ser psicólogo. Depois há diferentes tipos de profissionais, há psiquiatras que carregam muito na medicação. Já recebi pessoas a fazer três antidepressivos diferentes. Com o tempo criam-se clientelas. Hoje sou procurado por pessoas com problemas conjugais e pessoas com problemas psiquiátricos que sabem que medico menos.

Precisamos mesmo de psicólogo?

Até certo ponto pode não ser preciso mas há momentos em que é. A vantagem é ser uma relação neutra, todo o espaço é para a pessoa. E eu de facto não julgo. Posso ter opinião mas genuinamente não julgo.

Se uma pessoa for uma idiota e as relações falharem por sua culpa, não lhe dizer não vai adiar a solução?

Eu não digo que os amigos não podem ajudar, mas há uma altura em que o amigo esgota a possibilidade de ser neutro e por outro lado tem de perceber que as pessoas demoram tempo a encaixar e a chegar lá. Eu até posso dizer, mas no tempo certo.

Essa consciência do tempo foi a principal lição?

Demorei a perceber que o tempo é fundamental. E muitas vezes as pessoas melhoram enquanto estão connosco mas pode não ser por causa de nós. O tempo melhora quase tudo.

Voltando ao presente de aniversário, e tempo, quanto mais gostava de ter?

Com saúde, o tempo todo que fosse possível. Sem saúde não, tenho muito receio de doenças. Não que viva obcecado com isso, faço exames e ginástica mas fumo as cigarrilhas.

Mas a vida que viveu ate agora chega-lhe?

Não chega. Tenho pena de morrer.

Há pessoas que têm terror.

Pois, pavor não tenho. Tenho até curiosidade. A morte é uma coisa que, não pensando muito nela, me fascina. Gosto muito de ler biografias e há personagens que me fascinam por isso mesmo, pela forma como passaram a fase de doença e morte.