A 25 de Abril de 1974 estava tudo preparado: a Barraqueiro ia dar um dos maiores (dos muitos) saltos da sua história. Então com 80 autocarros, a empresa de transporte rodoviário sempre viveu limitada a crescer por aquisições, já que não eram autorizadas novas carreiras e o transporte ferroviário estava off limits para o sector privado. Cresça-se por aquisição, então.
O alvo naquele ano era a Arboricultura, que com os seus quase 100 autocarros mais que duplicaria o tamanho da Barraqueiro. O destino interveio… ou antes, Salgueiro Maia. “Tínhamos acabado de fechar negócio com a Arboricultura”, recordou Humberto Pedrosa.
“Justamente no dia 25 de Abril íamos ao notário para fazer a aquisição da empresa. Mas o vendedor, que era uma pessoa muito séria e de palavra, alertou-nos: ‘Esperem lá mais um bocado porque há aqui uma revolução e é melhor não tratarmos hoje do negócio.’”
Decidiram adiar a assinatura da compra e o dono da Barraqueiro, sem o saber, evitou o que teria sido um dos maiores reveses da sua vida. Tivesse a revolução eclodido um dia depois e tudo teria sido diferente. “Foi o que nos valeu”, contou numa história recuperada recentemente pelo “Expresso”.
A história da Barraqueiro confunde-se com a de Humberto Pedrosa, que a lidera desde os seus 20 anos, há quase cinco décadas.
E porque teria sido tudo diferente? Quando as nacionalizações avançaram o decreto decidia que as dez maiores empresas de transporte com mais de 100 autocarros passavam de imediato para as mãos do Estado. A Barraqueiro, então 11.a e com apenas 80 veículos, escapou à razia graças ao não-negócio com a Arboricultura – essa sim, foi tomada pelo Estado. “Se tivéssemos sido nacionalizados eu não estaria aqui”, sintetiza o dono da Barraqueiro. A boa relação com os trabalhadores também iria salvar a empresa de um outro susto revolucionário, mas já lá vamos…
A revolução apanhou Humberto Pedrosa com 27 anos, sete anos depois de dar por si a controlar os destinos da empresa que gradualmente veio a tornar num império de transportes – primeiro na rodovia, depois na ferrovia e agora nos céus. Foi em 1967 que Artur Pedrosa comprou a Barraqueiro e a passou para as mãos do filho. Humberto tinha então apenas 20 anos e assumia os destinos de uma empresa já com 33 anos de vida oficial, duas guerras mundiais e um imenso rol de altos e baixos.
A Barraqueiro foi constituída em 1914 pelos irmãos Joaquim e Miguel Jerónimo, que pouco depois tentaram aproveitar o desinvestimento a que a lisboeta Carris foi obrigada pelas dificuldades económicas da Grande Guerra: a Carris reduziu a oferta e cortou a ligação entre a capital e a Ericeira, e foi essa precisamente a primeira carreira em que os irmãos apostaram – ironicamente, um século depois, Humberto Pedrosa perdeu, este ano, a corrida à concessão da mesma Carris.
Mas a duração do conflito 1914-1918 acabaria também por passar factura à Barraqueiro: as dificuldades económicas constantes e a escassez de materiais no país para a manutenção da frota não deixaram alternativa ao fecho da empresa. Apenas para regressar em 1926 com os mesmos donos, que ao longo dos anos seguintes foram acumulando alguma (pouca) dimensão.
Sobreviveram aos anos 30 e também à Segunda Guerra Mundial, tendo chegado ao final dos anos 60 com cerca de uma dezena de autocarros. Mas se havia autocarros, herdeiros para tomar a empresa é que nada, razão que levou Miguel Jerónimo a procurar quem lha comprasse, e foi assim que Artur Pedrosa aproveitou a oportunidade. Outra surgiria já ao virar da esquina, ali como quem vai de Lisboa a Santo António de Cavaleiros.
Com 20 anos à data em que tomou o controlo da Barraqueiro, é difícil escrever a história de um sem a outra. Antes da Barraqueiro já Humberto Pedrosa vivia à volta das ideias, dos negócios e das oportunidades.
A família em tempos viveu da compra de gado no Alentejo, que transportava e vendia na feira da Malveira ou em Lisboa, e os seus pais chegaram a ser donos de uma mercearia. Otio era também ele dono de uma empresa de transporte de mercadorias e a Barraqueiro acabou por mostrar a Humberto Pedrosa que no transporte de passageiros havia uma pequena diferença em relação ao negócio das mercadorias que para si fazia toda a diferença: o dinheiro pago pelos bilhetes entrava na hora, e não a 60, 90 ou mais dias.
"Quando começam a enrolar aviso logo que vão directos ao assunto"
Além de viver a passagem de testemunho, ofinal dos anos 60 seria marcante para a Barraqueiro por outras boas e más razões: por um lado, a empresa obtém a ligação para o então nascente bairro de Santo António dos Cavaleiros, conseguindo aproveitar o crescente fluxo de moradores que dali iam diariamente trabalhar para Lisboa – suficientes para a garantir à empresa autocarros completamente lotados nas horas de ida e regresso do trabalho.
Já no final da mesma década, as cheias de 1967 voltaram a ameaçar a empresa, que deu por si com 25 dos 30 autocarros da Barraqueiro submersos no Olival de Basto. Levou vários meses e muitas jornadas de horários acima do normal, mas todos foram recuperados. Nada como estar rodeado de amigos de confiança, trabalhadores bem tratados, e ser o primeiro a dar o exemplo: da cobrança de bilhetes quando faltava alguém a tratar das escalas, das carroçarias ou de tarefas de oficina, nenhuma tarefa na empresa era estranha a Humberto Pedrosa.
A boa relação com os trabalhadores é, aliás, um ponto que muitos identificam como central na gestão de Humberto Pedrosa. Uma postura que não só leva a Barraqueiro a ajudar os seus trabalhadores em horas de maior aperto, como o inverso. Depois de evitar o decreto das nacionalizações de 1975 sem saber muito bem que o estava a fazer, coube ao seu pessoal contrariar os ímpetos revolucionários da comissão de trabalhadores da empresa: convocado um plenário para decidir sobre a proposta de tomada da empresa, sindicato e empregados votaram todos contra, recordou o próprio, citado pela “Visão”.
As ligações a partir de Santo António dos Cavaleiros foram um dos maiores saltos da Barraqueiro, que a partir daí começou a ganhar escala e a apostar em novos segmentos do transporte de passageiros, normalmente com sucesso, como quando avançou para o transporte escolar ou para as excursões, tornando-se em alguns anos a empresa europeia com mais veículos a circular fora do seu país de origem.
Foi assim que o grupo lançou a Frota Azul, empresa da Barraqueiro dedicada ao transporte turístico e que usamos aqui como exemplo do modelo de organização empresarial promovido por Humberto Pedrosa: antes ter várias empresas com até 300 trabalhadores e 200 autocarros que um único grupo com todo e qualquer ramo centralizado.
A liberdade que recebeu do pai também a dá aos gestores das suas empresas, mas sem deixar de as manter debaixo de olho: “Nem sempre vai às empresas e delega as responsabilidades, mas todos sabemos que é ele quem manda e nem precisa de o dizer”, contou à “Visão” José Curvo de Deus, da Rodoviária do Alentejo, da Barraqueiro, sobre o novo dono da TAP.
"Estamos nos negócios para ficar, para investir, e na TAP não será diferente"
Apesar da presença nos novos segmentos do transporte rodoviário, Humberto Pedrosa não deixou de estar atento às boas oportunidades de crescimento por aquisição que iam surgindo. Foi assim que ainda antes da revolução a Barraqueiro tomou o controlo da concorrente Leonardo Mota, e foi assim que foi tomando quase todas as linhas da Rodoviária Nacional a sul, aquando da entrega destas a privados, já na década de 1980.
O salto para outro meio de transporte viria já no final do século xx, com o avanço para a travessia ferroviária do Tejo, através da Fertagus. Depois vieram os metros Sul do Tejo e do Porto. Agora chegou a vez de ganhar asas, lançando-se num segmento totalmente novo, a aviação. ATAP, como muitas outras empresas que Humberto Pedrosa foi puxando para a Barraqueiro, precisa tanto de uma injecção de capital como de confiança para conseguir uma recuperação digna da sua história. A acontecer, o potencial da transportadora terá muito a oferecer à Barraqueiro e ao sócio, ao ponto de até poder fazer esquecer o amargo de boca que a perda da concessão da Carris terá provocado a Pedrosa, que não gosta de perder.
Quem o conhece considera-o um homem reservado, calmo, mas ao mesmo tempo ambicioso e aventureiro, apesar de não ter qualquer apetite pelo mediatismo. Distinguido como comendador em 2013 e um dos homens mais ricos de Portugal, Humberto Pedrosa não gosta de perder tempo antes de tomar decisões: “Quando as pessoas começam a enrolar, aviso-as logo que vão directas ao assunto”, confessou, citado pela “Visão”.
Terá sido assim que decidiu avançar para a TAP. Convidado pelo Barclays a conhecer David Neeleman, um jantar terá sido suficiente para surgir a parceria. Agora, da ferrovia à rodovia, da Fertagus à Metro do Porto, a TAP será o Red Bull que vai dar asas à Barraqueiro, empresa cujo nome recua ao século XIX, quando a família Jerónimo tinha barracas de venda na Malveira. Século e meio depois, Humberto Pedrosa conseguiu transformar a alcunha “Barraqueiro” em sinónimo de império.