Divirto-me a fazer o relato desta imensa loucura que testemunho, num tom entre o comentador de futebol e o enviado-especial na passadeira vermelha dos óscares. Estou com o Luís em Thrissur, no estado do Kerala, na primeira paragem de uma viagem de vespa pela Índia. À nossa frente desenrola-se, há mais de duas horas, uma espécie de duelo sensacional entre duas equipas, cada uma com quinze elefantes decorados a rigor, mais um oceano de gente no meio. O ambiente tem tanto de festival de rock como de procissão religiosa. Montados nos elefantes, os membros de cada equipa repetem as mesmas coreografias vezes sem conta, exibindo chapéus-de-sol coloridos que vão trocando ao som de uma música com mais de dois mil anos, tocada ao vivo no meio da multidão frenética. É a Índia com ponto de exclamação, tradição e história, cores e gritos e pó – e milhares de telefones em riste a tirar fotografias e selfies.
Foi um dia em cheio, este que vivemos no Thrissurpooram. Logo de manhã assistimos à chegada dos elefantes (mais de cem!) ao templo principal, em demorada, colorida e barulhenta procissão no meio das pessoas e do calor. Sempre acompanhados pelo ritual dos chapéus-de-sol, a música omnipresente, a multidão compacta mas sorridente, suada mas solene.
Depois de almoço enfiámo-nos (vá-se lá perceber porquê) numa confusão de sardinha em lata, nunca vi nada assim: os corpos esmagados entre uns-e-outros, um cocktail de suores e óleo de côco, gritos de deixa-passar, sorrisos de what-to-do, mãos atrevidas aqui-e-ali, e tudo aos saltos com a música, e empurra e puxa, mete o cotovelo, tira o pé, respira fundo e deixa-passar, deixa-entrar, deixa-sair, quero-fugir. Tudo para ver uma orquestra de trezentas pessoas, teoricamente a maior do mundo, a tocar num espaço mínimo o tal som antigo e hipnótico, feito de percursão e sopro, de suor e história e amor. Há qualquer coisa de tribal aqui, de primitivo e mágico, frenético, húmido.
"Where are you from?", até no meio deste caos nos perguntam isto.
Quando fomos finalmente para a área onde ao final da tarde ia decorrer o evento principal – o tal dos quinze elefantes "contra" outros quinze – estávamos exaustos e encharcados, espremidos, moídos, esmagados. Que louca vertigem, esta experiência.
Ao chegar à colina de acesso ao templo vimos uma pequena bancada com turistas e decidimos espreitar – e de repente tínhamos um polícia a fazer sinal para subirmos, "sentem-se aqui, esta bancada é especial para estrangeiros".
Boa jogada do Turismo do Kerala: e, já agora, muito obrigado pela atençãozinha. Tivémos vista privilegiada sobre os rituais e o caos, como numa bancada VIP de um festival de Verão. Ao início declarámos que só ficávamos aqui um bocadinho e depois íamos atrás da experiência "genuína", mas soube tão bem um pouco de espaço e oxigénio, depois da intensa espremidela ao longo do dia. Já não saímos. E durante três horas testemunhámos um espectáculo único, milenar, cheio de significados que desconhecíamos, que só mais tarde fomos investigar, para perceber o que se tinha passado ali.
Não estávamos à espera disto. Só viémos a Thrissur porque alguém nos disse qualquer coisa do género "vão lá que aquilo tem imensos elefantes". Ainda bem que viemos: a nossa aventura pela Índia não podia ter começado de melhor forma.
{relacionados} Artigo escrito por Jorge Vassalo com ilustrações de Luis Simões, ao abrigo da parceria entre a agência de viagens de aventura Nomad e o Jornal i.