Portugal poderia ter sido um dos destinos da rota do escritor holandês, fluente em várias línguas, entre as quais o inglês e o espanhol. O acaso acabou por ditar maior proximidade com o outro país ibérico, mas brincou com os nomes e colocou o da maior fadista na sua geografia de afectos. Herman Koch junta mais um mapa à publicação de “O Jantar”, um best-seller mundial, já publicado em 40 países, que chega agora aos escaparates nacionais, representando a primeira edição portuguesa do autor.
Na Wikipedia, o nome que é atribuído à sua mulher é Amália Rodriguez. É um pormenor curioso, sobretudo agora que é editado pela primeira vez em Portugal…
Sim, é engraçado e nunca o tentei alterar. Ela, de facto, chama-se Amália, mas alguém errou e completou com o apelido da fadista [embora apareça Rodriguez e não Rodrigues]. Mas não sei porque puseram o nome dela assim, porque não sou casado com nenhuma Amália Rodriguez [risos].
O seu livro “O Jantar” foi originalmente publicado em 2009, mas só agora é que é editado aqui. Como o apresentaria aos leitores portugueses?
Diria que é um romance sobre uma família, ou melhor, duas famílias que se debatem com um problema sobre os seus filhos adolescentes e vão a um restaurante para discutir isso. Há muito suspense em torno do que vai sair desse jantar no restaurante.
É parcialmente inspirado no caso verídico de uma mulher sem-abrigo queimada viva no interior de um banco, junto ao ATM, em Barcelona, no ano de 2005. Foi essa situação que o fez começar a escrever o romance?
Sim, foi certamente o gatilho, mas antes disso já tinha pensado em tentar escrever um romance chamado “O Jantar” em que a acção se passaria num restaurante, com seis ou oito pessoas. Só que na mesma altura aconteceu esse episódio real, que vi na televisão, de dois jovens que, de início, não estavam realmente a atacar a mulher sem-abrigo, mas mais a molestá-la atirando-lhe objectos, e ela depois acabou por morrer. O que mais me impressionou foi que esses rapazes não tinham a imagem que estamos habituados a associar à prática deste tipo de actos.
Como eram eles?
Eram rapazes normais de 16 anos. E ao início, as pessoas em Espanha, e eu próprio também, até pensavam que seriam adolescentes ricos entediados. Mas no fim percebeu-se que também não eram. Eram de classe média, não tinham bebido nem consumido drogas. Estavam a “divertir-se” e perderam o controlo. Foram detidos no dia seguinte porque foram filmados pelas câmaras de vigilância. Então pensei que seria um bom ponto de partida, porque aqueles dois podiam ser os meus filhos, tal como podiam ser os filhos de qualquer pessoa. Acho que isso causou grande parte do choque nas pessoas.
Porque estamos habituados a associar a violência a certos estereótipos?
Na maioria das vezes, sim, e frequentemente confirmam-se, quando as investigações revelam que há historial de dependência de álcool ou drogas ou de violência doméstica, por exemplo. Aqui apareceu do nada e não se repetiu, apesar de ocasionalmente acontecerem casos de violência contra sem-abrigo ou pedintes.
E porque quis situar a acção num restaurante?
Porque pensei que, de certa forma, um restaurante assemelha-se a um palco. Se estivermos a jantar em casa, pode haver mais interrupções. Num restaurante, particularmente quando é uma ocasião especial, ficamos até ao fim, não abandonamos a mesa. A minha ideia foi colocar dessa forma uma sensação de claustrofobia na história. Ninguém pode sair, mesmo quando as quatro personagens tentam, até ao fim, evitar o confronto iminente. Até porque uma delas é um político, que não quer um escândalo no restaurante. De resto, é também por isso que ele o escolhe para o jantar.
Fala das personagens. Uma delas é o narrador que, às tantas, vai mudando e revelando-se uma personagem diferente. Como encontra o momento ideal para introduzir essa mudança de tom na personagem e na própria história?
Não planeio com muita antecedência, mas enquanto estava a escrever pensava que talvez lhe devesse atribuir determinados pensamentos que muitas vezes passam pela cabeça das pessoas, mas que elas têm medo de expressar ou que se perguntam se sequer os podem ter. Para mim foi uma espécie de jogo, deixando-o avançar gradualmente, ver até onde ele iria e até que ponto o leitor manteria a sua simpatia por ele. Há momentos em que a personagem mostra que está fora de controlo, mas também fora do meu controlo, porque não posso prever o que ele vai fazer a seguir.
Teve uma carreira ligada à televisão e à representação. Isso ajuda-o a construir as personagens?
Não muito. Não era um actor propriamente. Tive um programa de comédia, durante muitos anos, em que recorríamos muito à improvisação e criatividade. Pode ajudar alguma coisa no sentido em que se pensa na postura que a pessoa tem quando está em frente a uma câmara e na forma como fala. E essa parte é importante para mim, quando encontro o tom do romance, a voz, fico satisfeito. Por isso, as duas primeiras páginas deste romance são talvez as mais importantes para mim, porque quando as escrevi percebi que tinha agarrado essa personagem, o narrador, que tinha compreendido quem ele era. Nessas páginas percebemos o tipo de homem que é através do tom com que se explica. O que não percebi logo nessas páginas é que ele iria ser uma personagem que esconde muitas coisas.
Além deste romance tem outros ainda não publicados em Portugal. Está sempre a escrever, tem algum método?
Depois de “OJantar” escrevi dois romances: um deles já foi publicado em português, mas no Brasil; o outro está editado na Holanda e em mais cinco ou seis países, e neste momento estou a escrever um novo. Quando termino um romance penso sempre que devo tirar alguns meses para esquecer completamente o anterior e recarregar as baterias. Mas as regras nunca são muito rígidas. Se tiver uma ideia para um novo, semanas depois do anterior, começo lentamente a desenvolvê-lo. Estou longe de ser um workaholic, mas sinto-me melhor se tiver um projecto.
E o que lhe serve de inspiração para os livros?
Acho que a inspiração vem maioritariamente das coisas do quotidiano, não tanto das notícias ou factos, embora em “OJantar” tenha vindo daqui. Mas é uma excepção, na realidade. Porque a maioria dos meus romances são escritos na primeira pessoa, alguém que fala para o leitor, e procuro uma profissão ou uma espécie de conflito individual que possa explorar num romance. Mas de resto não planeio muito. Para mim, o importante é começar e ter uma primeira frase, e que esta já diga muito.
Falou do livro que está a escrever…
Sim, e esse é um exemplo do que dizia. A primeira frase do livro que estou a escrever agora é “a cidade está pronta para uma grande limpeza” e o parágrafo continua sem sabermos quem está a falar.
E quem é, pode dizer-nos?
Quem está a falar é o presidente da câmara dessa cidade [risos]. Porque não ter um autarca num dos livros? O presidente da Câmara de Amesterdão fala de forma muito directa e é muito simpático. Eu pensei que talvez me pudesse colocar no seu lugar, mas fazendo aquilo que ele não pudesse admitir publicamente. Se ele quiser fazer uma mudança, eu posso fazê-la por ele num romance.
Em “O Jantar”, além da história central, há considerações paralelas e uma quase análise social dos comportamentos. Procura isso quando escreve e lê os romances?
Acho que não o faço conscientemente. Penso que com a idade e a experiência de vida que tenho, consigo fazer uma boa descrição da sociedade e dar uma visão detalhada dela, uma vez que a conheço tão bem. O mesmo acontece com as quatro personagens no restaurante. Eu conheço esse tipo de pessoas muito bem. Tento sempre estar muito próximo, nunca escreveria um livro sobre alguém no século XVIII ou um romance histórico.
Mas a meio do jantar, a mente do narrador vagueia por lembranças e outras histórias paralelas à principal…
Sim, de certa forma, está fora da história principal. Muitas vezes gosto de expressar certas coisas ou ironizar sobre elas. A questão era saber se o conseguia fazer neste romance, sem ser apenas uma distracção. Então escrevi e depois reli, e vi que resultava porque eu não gosto quando a história se desenrola com base no dia a seguir ao outro, ou semana após semana. Se houver algo que evoque outras coisas, especialmente num jantar, isso acontece. A mente ausenta-se para outros lugares.
Nunca se perdeu nessas divagações ou teve dificuldade em voltar à história principal?
Oh, sim. Mesmo neste livro, quando as personagens conversam sobre o último filme do Woody Allen ou sobre política – porque isso é o tipo de assunto que se tem nos jantares. Pus isso tudo em algumas páginas e depois apercebi-me de que me ajudou a conhecer melhor essas personagens, mas a história não avançou. No fundo, abrandou demasiado o ritmo.
Lembra-se de quando foi a primeira vez que pegou num papel para escrever?
Nas férias, naqueles dias em que não dava para sair de casa, tinha um bloco onde fazia desenhos, mas também escrevia histórias e depois lia-as aos meus pais. Em minha casa também havia o hábito de contar histórias, e eu, aos sete anos, as histórias que contava aos meus pais sobre a escola eram totalmente inventadas.
E inventava essas histórias por gostar ou por detestar a escola?
Lembro-me que até aos 11 anos gostava da escola, até me sentia mal quando estava doente e não conseguia ir. A partir daí passei a querer cada vez menos estar na escola e deixei de contar histórias sobre ela em casa.
Houve algum escritor ou livro que o tivesse marcado?
Não consigo eleger apenas um livro que me tenha marcado. Há, no entanto, um escritor holandês que escreveu um livro que foi um grande bestseller e ele próprio estava na capa do livro, com um blusão e calças de ganga e sentado numa Harley Davidson. Ele era muito bem-parecido e o livro era sobre as suas aventuras nas viagens que fez pelo mundo, por locais como Ibiza. Eram histórias de amor, de muito sexo também. E na altura apercebi-me de que isso era o fim de uma parte da minha juventude e pensei que estava na altura de ler os escritores a sério.