Esta semana abri e fechei a boca como um peixe várias vezes. De espanto. Mas os peixes, ao que consta, têm memória curta, enquanto a minha parece ter gozo em ver permanecer as coisas que me irritam. Seringa-me a paciência e pica-me, provocadora. “Não vais deixar aquilo passar, pois não?”, insiste. Mas pior ainda é quando varro as minhas indignações para debaixo do tapete: então é que nunca mais me desamparam a loja. Venha daí a catarse, e talvez se aproveite alguma coisa.
1. Continuam a sair nos jornais as peças processuais da acusação de José Sócrates, em versão folhetim. O próprio deve estar radiante, há muito adepto do “digam bem ou digam mal, o importante é que falem”. Mas como se sentirá o juiz Carlos Alexandre que, ao que consta, fechou a papelada toda a sete chaves, cada vez que descobre que às sete se somaram sete e já são pelo menos vinte e uma? Não sei, mas para mim a fuga ao segredo de justiça é um escândalo. Ou existe ou não existe, mas se existe é para cumprir. Já dou por mim a repetir-me, mas como é que é possível que o MP queira manter a credibilidade quando é incapaz de descobrir o culpado entre a mão-cheia de gente que podia ter cometido o crime? Como podemos depois acreditar que apanham os bandidos certos, num universo de 10 milhões? Ao menos os da lista VIP sempre deram com quem acedia à conta de quem.
Mas se é inevitável esta transmissão em quase-directo de tudo o que se passa à porta fechada, então sugiro que seja o Estado a facturar a venda dos direitos de cada desafio/inquirição, a quem der mais. Por fim, a final/julgamento seria transmitida de um estádio de futebol, com venda de bilhetes a adeptos ululantes, era casa cheia de certezinha absoluta. “Quem quereis que solte, Jesus ou Barrabás?”, gritava o juiz, e a malta decidia. Depois chamavam-se os leões. Não sei porque acho que já houve em tempos quem tivesse tido esta ideia.
2. A indignação número dois surgiu ao ler um artigo do jornal “Público”, sobre o novo Regime Jurídico da Adopção, em discussão na AR, que aparentemente prevê que aos 18 anos os adoptados possam ter acesso à informação sobre a sua família biológica sem a intervenção de um juiz. A única excepção: os “filhos” dos dadores de esperma e óvulos. Justifica um especialista ouvido pelo jornal: “Partiu-se do princípio de que o anonimato facilitaria a angariação de dadores.” E acrescenta: “Mais: anularia o risco de a pessoa assim gerada depois bater à porta do dador e perturbar a sua vida familiar.”
Ou seja, pelo que consegui entender, o valor posto na importância de conhecer as origens biológicas é vital, excepto quando não é!
Perturbam-me estas incongruências. Protege-se o casal que recorreu a dadores, mas deixa-se a família que acolhe uma criança rejeitada, abandonada ou maltratada sujeita à chantagem de uma família biológica que rejeitou, abandonou e maltratou? Considera--se que são pais verdadeiros aqueles que amam e criam, transforma-se legalmente aquela criança num filho biológico, mas afinal o importante é conhecer a “verdadeira” família? Permite--se que, sem a ponderação que se espera de um magistrado, um impulso aos 18 anos resulte na cruel descoberta de um relatório de tragédias sórdidas?
E que lógica ética tem proteger um dador, remunerado, por muito que se vá dizendo que recebe apenas pelas despesas médicas, mas deixar vulnerável uma mulher que provavelmente deu em segredo o filho para adopção? Não pode ser a sua vida familiar perturbada por um filho indesejado que lhe bata à porta? Talvez os senhores que querem alterar a lei tenham pensado muito bem nisto tudo, mas eu vou ter de pensar mais. E dito isto podia continuar para a Grécia, mas não me atrevo.
Jornalista e escritora
Escreve ao sábado