A abordagem contemporânea de um clássico da dança não será propriamente novidade e “O Pássaro de Fogo” tem sido objecto de diversas recriações. Desde a estreia, em 26 de Junho de 1910, no Teatro Nacional da Ópera de Paris, pelos Ballets Russes de Serge Diaghilev, que a coreografia de Michel Fokine, a partir de um libreto criado com Igor Stravinski, conheceu diferentes versões, algumas mais próximas da dramaturgia original. A maior parte das alterações foram acontecendo essencialmente na coreografia e na realização plástica, por vezes com algumas mudanças no enredo. No meio disto ficou sempre intacto o tema principal e a moral da história. Comecemos então por dizer que a versão da Companhia Nacional de Bailado (CNB), que se estreia hoje no Teatro Camões, fica mais próxima da primeira opção.
Mas atenção, fazer desta obra um clássico também no século xxi é um dos objectivos. Desde logo porque há vários olhares novos neste processo. Fernando Duarte coreografa pela primeira vez uma partitura de Stravinski e esta também é a primeira vez que Carlos Pimenta, convidado para fazer a dramaturgia e a encenação, colabora com a CNB. Actuando como uma espécie de “coordenador-geral” de uma equipa de mais de 100 pessoas, “dividida por especialidades”, mas envolvida num objectivo comum, o encenador explica que a base deste guião foi a versão de 1910, à qual depois se juntou “a liberdade de construir algo que fosse dos dias de hoje, com uma linguagem e instrumentos contemporâneos, procurando um diálogo entre o videomapping e a parte mais tecnológica, o palco e algum classicismo que o bailado tem”.
Desafio Criar novas formas de dançar uma obra intemporal, num registo clássico em que já todos os passos estão inventados, foi um dos objectivos de Fernando Duarte. O segredo está em “ouvir a música e perceber que novas soluções ou combinações podem também corresponder a esta exigente partitura. Os bailarinos do século xxi têm uma outra aptidão física, outro background, porque têm cada vez mais heranças, experiências de reportório variado e também outro virtuosismo e eu tentei agarrar isso de forma a criar um bailado cativante”. O criador, que há cerca de um ano aceitou o convite da direcção artística para trabalhar “O Pássaro de Fogo”, confessa que nunca pensou que Stravinski lhe aparecesse tão cedo para coreografar, até porque, não só é uma partitura que nunca dançou, como não viu muitas vezes em cena, por isso o processo de preparação deste espectáculo demorou mais tempo. “Sou muito agarrado à música, preciso de a ouvir muito, e tive de a interiorizar para perceber que passos ficariam bem”, conta.
Nuno Maya, que com OCUBO desenhou o seu primeiro espaço cénico em videomapping para a companhia, criou uma cenografia imersiva a 270o em volta do público e faz a sua estreia num projecto de interior com bailado. O impacto visual do cenário é o que imediatamente se destaca, mas há outros elementos importantes, como a Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida por Joana Carneiro. Tudo isso não deve, no entanto, ser factor de distracção, como nota Fernando Duarte, desviando o olhar do público do que é fundamental: os bailarinos e a coreografia. A sintonia com a dança foi aliás a maior prova que Nuno Maya teve de superar. Apesar de habituado à ligação entre a música e a imagem, o artista teve de trabalhar uma terceira vertente, “o elemento de bailado” e o número de bailarinos desta produção. “Foi estudado passo a passo e é um trabalho de vários meses, em que fomos sempre reunindo com o coreógrafo, o encenador e o José António Tenente, que assina os figurinos.”
Visual A criação do cenário implicou também criar projecções para uma duração superior ao habitual, cerca de 45 minutos, ao mesmo tempo que se procurou fazer entrar o público no cenário. Para as imagens que compõem as projecções seguiu as directrizes do guião. “O objectivo era criar um ‘Pássaro de Fogo’ contemporâneo e diferente da época do clássico, e que tem a ver também com o momento em que se passa a história. O Carlos situou isto num momento quase pós-apocalíptico, em que a vegetação invadiu tudo”, refere. As imagens são por isso ampliações de vegetais verdadeiros, plantas, folhas, trabalhados depois numa série de animações em pós-produção com o objectivo de criar cenários abstractos, oscilando entre o belo e o assustador. Afinal é esse o imaginário da obra, com cenários de fantasia onde coabitam seres humanos e criaturas mágicas, o bem contra o mal, mas com elegância.
Teatro Camões, até dia 28. Quarta a sábado às 21h, domingos às 16h; bilhetes entre os 5€ e os 25€