Reforma nem sempre é sinónimo de parar de trabalhar

Reforma nem sempre é sinónimo de parar de trabalhar


Apesar de Portugal ter mais de dois milhões de pensionistas por velhice, nem todas as pessoas olham para a reforma como o fim de uma vida de trabalho. 


Há quem aproveite estes anos para seguir um sonho que ficou para trás ou até para dar outra abordagem à profissão que manteve durante toda a carreira. O i dá-lhe a conhecer quatro casos de sucesso de quem pensa em tudo menos em parar.

 

António Simões Ermida. A reforma é para cumprir um sonho

António trabalha desde os 12 anos mas não tem intenções de parar. Aos 74, diz que “está a aproveitar a reforma para fazer o que gostaria de ter seguido como carreira”.

Da juventude recorda com saudade os tempos em que tinha uma banda onde era vocalista: os “Sabiá”. Tal como o pássaro, também a música que tocavam tinha origens brasileiras: “Era uma banda de música brasileira mas se nos pedissem outra coisa improvisávamos no momento!”, conta. 

Durante 28 anos foi funcionário das Páginas Amarelas, trabalho que mais tarde acumulou com a sua loja de produtos naturais. Depois da reforma, dedicou-se apenas ao estabelecimento que “a crise levou”. Sem emprego, António entrou em depressão: “Nem saía de casa. Tinha medo de sair à rua, medo de atravessar a estrada”. 

Mas sabia que não se podia entregar à doença. “Moro em Odivelas mas um dia meti na cabeça que tinha de ir a Lisboa dar uma volta”, relembra. A sua vida estava prestes a mudar: “Passei por um sítio que dizia ‘actores e figurantes’. Vou ver o que isto dá”. Entrou, deram-lhe uma ficha de inscrição e no dia seguinte estava a trabalhar: “Sou figurante há seis anos e não sou esquisito, faço tudo o que aparecer”. 

Figura em televisão, cinema, teatro e novelas. Continua a trabalhar em primeiro lugar pela necessidade de estar ocupado. Só depois vem a necessidade financeira. Faz figuração para cumprir um sonho: “seguir uma carreira na representação”. 

E prefere até trabalhar de graça do que parar: “Já fiz anúncios para a AMI e a APAV e não cobrei, claro. E também ajudo jovens realizadores quando precisam de actores para curtas-metragens”. Diz ter a noção que “para algumas coisas já está velho”, mas se lhe pedissem para cantar “ainda arriscava”. 

Uma vez por ano, António realiza também os sonhos das crianças: faz de Pai Natal numa superfície comercial de Lisboa. A reforma continua fora de questão: “Só paro quando não puder mais. Não tenho medo do trabalho, tenho medo é que eu acabe para o trabalho”. 

 

Abílio Moreira. A dificuldade de estar parado persegue-o

Desde os sete anos que trabalha e, aos 68, continua no activo. Natural do concelho de Marco de Canaveses, começou a acompanhar os adultos no trabalho do campo quando saía da escola primária. Ao acabar a quarta classe foi ao exame de admissão à escola técnica: “A minha mãe era analfabeta e dizia que não era preciso mais nenhum na família”. Conta que “sempre teve boas notas” e que nunca descurou a aprendizagem. Depois veio a tropa. 

Em Maio de 1969 viajou até à Guiné para fazer o que considera ter sido uma tropa “normal para a época”. Lembra-se dos conflitos mais sangrentos e até daquela vez em que quase todo um pelotão de artilharia foi dizimado. Dois anos depois voltou a Portugal. 

Em Junho de 1974 ingressou no Banco Nacional Ultramarino (BNU). “Comecei como porteiro e contínuo e mais tarde, por força das minhas habilitações, fui promovido a funcionário administrativo”, conta. Em 1993, aos 46 anos, chegou a reforma. Abílio, que fazia análise de crédito, envolveu-se num conflito com um director do banco: “Foi por causa de um processo de financiamento que eu entendia que não devia ser feito.” Recusou-se a assinar qualquer documento relativo àquele despacho e, no dia seguinte, “os recursos humanos do banco disseram-me que ia ser reformado”.

Como? “Tudo era possível naquela altura”, considera. E a história até veio dar razão a Abílio: “Três meses depois a empresa a quem eu não queria dar crédito faliu”. Mas era tarde, já estava reformado. 

Nem tudo foi negativo. Já estava inscrito no Ministério das Finanças como técnico oficial de contas e a reforma do BNU fez com que Abílio deixasse “de fazer uma coisa de que gostava para passar a fazer outra”. A dificuldade em estar parado nunca o deixou: “Agarrei-me e fui arranjando clientes, uns conhecidos da banca, outros a quem fui recomendado. Até hoje.” 

Nesta profissão, Abílio diz que tem mais dois anos à sua frente. Mas ainda não vai parar: já tem outro projecto em mente. Vai lançar um negócio na internet mas o ramo ainda está no segredo dos deuses.

 

Dória Nóbrega. Uma vida dedicada à Maternidade Alfredo da Costa

João Dória Nóbrega estava inclinado para seguir Agronomia. O desejo de ingressar numa carreira na Medicina só surgiu no “último trimestre do antigo sétimo ano”, actual 12º. Fez o curso em Lisboa, mas as guerras ultramarinas levaram-no para Angola: “Esperavam que acabássemos a nossa formação para sermos chamados para o serviço militar. Acabei de me formar e fui logo para a tropa.” 

O dia 30 de Novembro de 1963 foi passado em Angola e marcou a carreira de Dória Nóbrega. Foi chamado a intervir num parto de trigémeos em que os bebés “nasceram vivos mas como eram muito prematuros acabaram por morrer”.

O médico, que “andava a pensar seguir cardiologia”, decidiu naquele momento optar por fazer carreira na obstetrícia e ginecologia. 

A comissão terminou e, ao regressar a Lisboa, com 30 anos, foi para a maternidade Alfredo da Costa: “O concurso para interno já estava fechado quando voltei mas fui pedir ao director para me contratar”. Toda a carreira de Dória Nóbrega foi dedicada à MAC, de onde o médico se reformou aos 61 anos como director do serviço de obstetrícia. Foi chefe de serviço da MAC durante 18 anos e exerceu ainda o cargo de director durante dois anos e meio: “Quando saí, em 1996, vim com a total sensação de que tinha cumprido a minha função e feito aquilo que eu desejava fazer”.

Tem 81 anos e recorda os mais de 30 que dedicou à MAC como “muito gratificantes”. Havia trabalho “a triplicar” e a “vantagem de aprender bem e depressa.” Após a reforma, dedicou-se a tempo inteiro ao seu consultório que mantém as portas abertas desde 1969. Tinha prometido à família que aos 80 anos parava de fazer partos e cumpriu: “O último que fiz na minha vida foi a 25 de Julho do ano passado.” A nível do privado tem os partos todos contados: foram 1890. 

Enquanto mantiver a boa visão e audição e entender que escreve “as receitas com letra firme” vai continuar a dar consultas. Costuma dizer que as pessoas vêm “umas pelas outras” mas que chegará a altura em que “vão indo”, deixando de marcar consultas. “Quando isso acontecer fecha-se a porta”, remata.

 

Betâmio de Almeida. O professor que trabalha sem limite de horas

À beira de completar 68 anos, António Betâmio de Almeida conta que “sentiu muito cedo a vocação de ser docente e o chamamento pela ciência”. Filho de professor e artista plástico, cedo conviveu com leituras e tertúlias. Entre a Física Nuclear e a Arquitectura, acabou por optar pela Engenharia e pelo Instituto Superior Técnico (IST).

Quando ainda era estudante assinou um contrato com a instituição e a esta ficou ligado. Considera que é “a segunda casa”: “Na vida adulta já vivi mais tempo lá do que em qualquer residência”, acrescenta.

Três anos de vida militar, dois no teatro de guerra exigente da Guiné, não interromperam a sua preparação para o doutoramento: estudou sempre onde estivesse. A sua carreira foi “baseada em três pilares”: ensino, investigação e consultoria técnica em projectos de engenharia, no IST e em empresas privadas. 

Especializou-se em hidráulica e recursos hídricos, em barragens e em energias renováveis e “desenvolveu linhas de investigação originais em Portugal”. 

Aposentou-se em 2009, por razões de saúde, e deixou de ensinar. No mesmo ano foi-lhe atribuído o título de professor emérito e aproveitou “para continuar o trabalho de investigação e de contacto com os jovens”. 

Diz que mantém “o ritmo que a sua saúde permite sem limite de horas”: trabalha de madrugada e aos fins-de-semana. A maioria das actividades que exerce actualmente são académicas e cívicas e “pro bono”. Coloca também a sua experiência ao serviço da comunidade técnica e empresarial de natureza privada, especialmente em projectos no estrangeiro. 

Trabalha sozinho: é telefonista, secretário, dactilógrafo e arquivista. “Dependo da qualidade do meu trabalho e da boa amizade de colegas”, refere. Os benefícios financeiros, as despesas e as obrigações fiscais dificilmente cobrem os cortes e os aumentos de impostos recentes e permitem honrar os seus encargos. Mas não abandona as qualidades que melhor o caracterizam: “curiosidade, insatisfação, perseverança e atenção aos outros”.