Ópera. Um mestre e oito alunos numa semana de afinações

Ópera. Um mestre e oito alunos numa semana de afinações


O grande auditório da Gulbenkian, em Lisboa, apresenta amanhã às 19h “Il Signor Bruschino”, de Rossini. 


O primeiro ensaio começa, pela manhã cedo, numa das salas da Fundação Calouste Gulbenkian reservadas para o efeito, e dá início a uma semana intensa de trabalho que culminará com a apresentação, amanhã, da ópera “Il Signor Bruschino”, de Rossini. Na sala, sensivelmente a meio do semicírculo que se forma em torno do professor e antigo cantor de ópera Claudio Desderi, e de João Paulo Santos, director musical de cena do São Carlos, que assume os comandos do piano, está Jovana Curovic. Distingue-se do grupo – composto por cantores com idades entre os 20 e os 30 anos e de várias nacionalidades (ver entrevista) – pelos seus longos cabelos negros. Ainda não chegou a vez de cantar nesta fase de preparação para o espectáculo de amanhã, com a obra do compositor italiano, escrita no início do século XIX. Para a sérvia de 27 anos, tudo é uma estreia nesta passagem por Lisboa.

É a primeira vez que está na capital portuguesa, que participa num workshop da ENOA – European Network of Opera Academies – e que a Operosa Foundation, organização que se destina a promover os jovens artistas de ópera nos Balcãs e da qual é membro, se faz representar nestes encontros internacionais. “As audições foram em Janeiro e a Operosa tornou-se membro da ENOA mais ou menos há dois meses. Disseram-me para vir e cá estou. O ambiente é maravilhoso, gosto muito.”

Apesar do rigor técnico e das interrupções para acertar a pronúncia ou para interpretar o texto – porque ópera não é só cantar –, o ambiente é, de facto, descontraído. As malas e mochilas são abandonadas em cima do pequeno palco lateral ou na pilha de cadeiras amontoadas na vertical. Há participantes que gesticulam mais do que outros quando encarnam a sua personagem, que se levantam e cantam de pé, quase encenando o momento em que pisarão o palco. Outros há que optam por permanecer sentados, retirando o caderno com a partitura do suporte e abrindo-o nas mãos como se fosse um romance, mesmo quando já se encontram na fase de diálogo e o interlocutor responde de forma eloquente, braços abertos, veias salientes e mãos na cintura. “Como se fosse uma tarantella”, diz às tantas Claudio Desderi, chamando a atenção de um dos participantes para o andamento que deve imprimir à sua interpretação. Enquanto isso, Jovana e outros colegas vão virando as páginas e seguindo atentamente a evolução da história, uns à espera da sua vez, outros como observadores da aula. 

Ensinamentos O à-vontade com que Claudio Desderi deixa os alunos, apesar de ser uma referência no género, é uma das razões que levam dezenas de cantores em início de carreira a procurarem estes workshops e, em alguns casos, a repetirem a participação, como acontece com a portuguesa Rita e a grega Electra. “É o meu segundo workshop, gostei muito dos moldes em que são feitos e esta é uma oportunidade gigantesca para qualquer um de nós. Trabalhar com o Claudio Desderi, que é alguém com uma grande carreira, é também uma grande honra. Portanto, só podia aproveitar”, conta Rita, que aos 24 anos faz parte do Coro Gulbenkian e tenta agarrar todos os projectos relacionados com ópera que lhe aparecem pela frente. 

Um feito para uma jovem soprano que veio da área das ciências, passou pelo curso de Radiologia e acabou por se apaixonar por um género que pouco lhe dizia quando começou a cantar. “Não gostava nada de ópera. Aos 14 anos cantava num coro, em Óbidos, e um dia disseram-me: ‘Vai haver um coro de ópera, queres participar?’ Respondi que não. No ano a seguir houve outra vez, no festival de ópera de Óbidos que ainda existia, e acabei por ir. Não fui obrigada, mas fui encaminhada. Na altura, fiz figuração. Daí passei para o coro e nunca mais saí”, recorda. 

Em “Il Signor Bruschino” representa Sofia, e no primeiro ensaio há momentos em que tem de repetir por mais que uma vez a mesma palavra até que a pronúncia e a entoação soem perfeitas. Muitas vezes, as palavras cantadas dão lugar à declamação, sobretudo quando o que está em causa não são tanto as notas da escala musical mas a vertente teatral. É preciso saber representar, adequar as posturas e as expressões. Nem que para isso seja necessário imaginar-se um hipocondríaco, como pede Desderi a uma das vozes masculinas. É obrigatório que a voz se adapte às características da personagem, neste caso um homem adoentado e coxo, o que pede um cantar mais arrastado e combalido. Acertadas a intenção, a atitude e as palavras, passa-se então para o tempo, às vezes mais apressado, outras mais lento. O piano ajuda a marcá-lo.

Fora de casa Tal como Rita, Electra, cantora grega de 29 anos, é repetente. Está novamente na Gulbenkian a convite de Claudio Desderi, com quem tinha frequentado um masterclass de Rossini. Até porque foi o repertório deste compositor que a motivou a vir pela primeira vez. Lisboa e o nível artístico e técnico das aulas também contribuíram para o regresso. Aproveitamos para perguntar se a crise que se vive nos dois países afecta a ópera da mesma maneira. “Em termos gerais, penso que Portugal tem melhor nível musical, mas na Grécia também começam a aparecer boas produções. Mas eu sabia que para ter a hipótese de actuar a outro nível teria de sair do meu país.” 

A Suíça foi o destino, aos 18 anos, para estudar e aperfeiçoar-se. Há dois que vive em Lyon (França) e actua um pouco por toda a Europa como cantora profissional, embora não esteja ligada a nenhuma companhia. Electra sabe que, tal como noutras áreas, também nesta é preciso um pouco de sorte para vingar: “A sorte de ser ouvida, estar no sítio certo à hora certa, com os parceiros certos e o papel certo. Há muitos cantores e alguns melhores que nós, por isso temos de encontrar aquilo em que somos realmente bons.” 

 Dominar outros idiomas também pode ajudar a fazer a diferença. Electra, por exemplo, diz que dificilmente escolheria uma ópera numa língua em que não dominasse a fonética. “Não tenho feito muitas produções em russo porque gosto de perceber completamente aquilo de que estou a falar, de forma a interpretar a personagem da melhor maneira possível, apesar de falar e cantar em cinco línguas diferentes.”

Rita concorda que, idealmente, o cantor devia saber falar a língua. No mínimo, tem de dominar a fonética. Mas mesmo assim optou por expandir a formação linguística aprendida no conservatório, aperfeiçoando o alemão. “A de italiano foi óptima. Tive sorte com os professores com quem me cruzei”, sublinha. 

Durante o ensaio, a comunicação com o professor Desderi faz-se essencialmente em duas línguas: inglês e italiano. Mas se a pronúncia da segunda tem de ser dominada na perfeição para a peça de Rossini, a primeira tem um objectivo mais utilitário. Às duas, independentemente do sotaque, são comuns a descontracção e a boa disposição, talvez porque, como diz o barítono, estas iniciativas na Gulbenkian “são especiais”, uma espécie de “ilha no universo musical europeu actual”. Aqui há “público, orquestra, staff, e os jovens cantores sentem-se numa espécie de paraíso”. Sobre esta ópera, que será o culminar dos workshops, Desderi diz que é especialmente apropriada para jovens cantores, apesar ser exigente e desafiante, combinando as regras rígidas da música com a liberdade de interpretação.

Depois de deixar os palcos, Claudio Desderi tem-se dedicado ao ensino. Um outro lado da ópera que lhe possibilita entender “profundamente a emoção de cada indivíduo, antes do cantor. Primeiro tem de se trabalhar para conhecer a pessoa que está à nossa frente, só depois disso é que se pode conseguir tirar tudo o que se quer. E eles ficarão verdadeiramente felizes por dar tudo o que têm”. E aqui voltamos ao que nos dizia Jovana: “Gosto mesmo é de explorar. Se formos realmente curiosos e quisermos testar os nossos limites, temos de cantar um pouco de tudo.”