Concluí esta semana que as pessoas se dividem em dois grandes grupos: as que sentem que o mundo lhes deve tudo e aquelas que acreditam convictamente que devem tudo ao mundo. Habitualmente, as que pertencem ao primeiro grupo lavam as mãos de qualquer responsabilidade pelo seu destino (a crise foi sempre herdada!), enquanto as últimas tendem a andar sempre a pedir desculpa por qualquer coisinha, desesperadas por nunca estarem à altura dos padrões de exigência que impõem a si mesmas.
O resultado prático é que enquanto umas fazem um inferno da vida de toda a gente em seu redor, as outras se martirizam, provavelmente sem grandes ganhos para ninguém.
Esta constatação recordou-me o conceito formulado pelo psicólogo Julian B. Rotter, nos anos 60, do “locus de controlo”, que pode ser externo ou interno. Peço desculpa se a minha interpretação não está absolutamente correcta, mas o que retive, e muito me tem servido para entender o mundo, é que a criança educada a acreditar que o controlo pelo que lhe acontece está sempre fora dela vai atirar sempre as culpas para os outros, enquanto aquela que cresceu à sombra do “locus interno” sentirá que lhe cabe a responsabilidade de conduzir a sua própria vida e, portanto, também a culpa exclusiva quando falha. Em traços largos, enquanto o “externo” se zanga com a mesa que se atravessou no seu caminho e o fez tropeçar, o “interno”, quando tropeça, reflecte que caiu porque é desatento, não viu a mesa e não a contornou.
Mas se é fácil perceber as desvantagens de crescer convicto de que a nossa vida está exclusivamente nas mãos de estranhos, sejam eles os astros, sejam os governantes do momento ou o senhor do IRS que mais ordena, talvez sejam menos óbvias as consequências negativas de uma educação “locus interna fanática” (a expressão é minha), imaginando que temos a culpa de tudo.
Se as suas orelhas ficaram encarnadas, cor de fogo, só de ler o que escrevi até aqui, provavelmente faz parte desta família de gente que não consegue dar a si mesma paz e sossego. Quase pela certa, recorda-se de chegar a casa a queixar-se de que uma professora o tratou mal, para no mesmo instante ouvir a pergunta sacramental: “Mas o que é que fez para que ela tivesse de se zangar?” As guerras nunca são responsabilidade só de uma das partes, os exames correm mal porque não se estudou o suficiente (e nunca porque o enunciado é feito por um idiota qualquer), o autocarro perde--se porque não chegamos a tempo à paragem, os filhos são mal-educados porque, como a palavra indica, não os educamos, e por aí adiante.
Pela minha parte ponho já o dedo no ar.
Tem um lado bom, claro, mas, meu Deus, como cansa. Ser um “locus interno fanático” leva a não pedir ajuda quando precisamos dela, a procurar ser “fortes”, quando só tínhamos a ganhar em partilhar fragilidades, a não nos satisfazemos completamente com nada, a sermos incapazes de receber um elogio, a roermos as unhas de culpa por cedermos à “preguiça” de nos deitarmos num sofá a ler um livro, do princípio ao fim, sem permitirmos que ninguém nos interrompa.
Ridículo do ridículo, precisamos constantemente de ser “autorizados” a descansar mesmo quando estamos estoirados, a ficar na cama mesmo quando estamos doentes, a dizer não posso, não faço, não quero, se não tivermos uma ordem superior, uma baixa médica que justifique a nossa recusa.
À medida que envelhecemos, ou dizendo melhor, crescemos, percebemos como este colete-de-forças é de loucos. Por isso respire fundo, e este fim-de-semana ponha o prazer à frente do dever. É um começo…
Jornalista e escritora
Escreve ao sábado