Nunca deixamos de nos pasmar quando a notícia é corrupção, ou tráfico ilícito de influências, ou coacções ilegítimas, e uma imensa maioria encolhe os ombros e aceita o óbvio da novidade. Que não era novidade, portanto. Apenas, quando muito, uma confirmação esperada. O futebol, hipérbole do desporto, é um dos domínios de eleição desse padrão reactivo.
Até porque (quase) todos têm um juízo e um pressentimento sobre futebol. Só não é assim como regra se a notícia diz respeito ao dirigente, ao treinador ou ao jogador do “clube” – aí, no pensamento irracional da turba, entra a fé de que não passará tudo de uma perseguição e uma conspiração de vontades de todos os que estão “contra”, mesmo em face de prova que deixa para trás a dúvida razoável. E essa fé irradia por (quase) todos, fé insensível a habilitações intelectuais, à heterogeneidade das profissões e a classes económicas, como uma luz que inebria, distorce, transfigura e insulta. Uma luz que, de tão forte, até serve para não destapar a podridão e, com isso, evitar que se solte a ira da turba. Daí às impunidades foi um passo. Vários e galopantes passos, feitos de golpes de teatro e cumplicidades entre os actores. Por cá e em todo o mundo, com excepções contadas no perfil das memórias. As detenções dos “suspeitos” da FIFA é mais uma dessas excepções. Com outro impacto e sem o beneplácito das cores do clube do coração. Não se trata de subornar um ou mais árbitros, de coagir um dirigente, de traficar na alienação de um “passe” de um jogador. Parece evidenciar-se um “modo de vida” e uma “cultura” da “organização”. À margem da decência e da lei. À margem dos valores do desporto…
Por agora, há todo um tabuleiro jurídico em marcha na investigação ao “Estado” dentro do(s) Estado(s) em que se converteu a FIFA. Na justiça norte-americana (por força dos movimentos bancários) e na justiça suíça (por força da sede da instituição) joga-se a obtenção de prova sobre a ilicitude criminal, feita de indícios de corrupção, extorsão, branqueamento de capitais e fraudes electrónicas. Por um lado, os contratos de publicidade, “marketing” e transmissão de direitos televisivos e outros direitos de exploração das competições organizadas pela FIFA e a atribuição do Mundial de 2010 à África do Sul (e os votos nas eleições presidenciais de 2011…). Por outro lado, no Ministério Público helvético, os processos de atribuição e organização dos Mundiais de 2018 e 2022 (Rússia e Qatar). Na justiça interna da FIFA, importaram-se as alegações criminais para o Comité de Ética decretar a suspensão provisória e cautelar dos suspeitos das confederações e das federações envolvidas. Depois, será o tempo da subsunção dos factos nos ilícitos desportivos.
No tabuleiro político, joga-se a sucessão de Joseph Blatter, que se confirmou com a sua renúncia depois de reeleito no Congresso de Zurique. O que se terá passado nestes quatro dias? O que terá convencido Blatter a abdicar do seu último ciclo de “vida”, depois de 40 anos dedicados a fazer sobreviver, primeiro, e, depois, ostentar a FIFA como a organização “global” e “capitalista” sonhada por João Havelange? O que explicará que Blatter tenha desistido da “capa” institucional que o cargo sempre lhe conferiu e da capacidade de resolução interna dos problemas sempre apregoada pela FIFA?
Apenas o alegado envolvimento de Jérôme Valcke, o seu mais recente braço direito? As respostas talvez provem a breve trecho que este não é apenas e só um caso de perda de impunidade. Talvez seja mais do que isso e, pelo caminho, Blatter não caia só…
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto.
Escreve à quinta-feira