O sentimento de “quanto mais conheço as pessoas, mais gosto dos animais”, perpassa muitos portugueses. Outros preferem ambientes controlados, com realidades filtradas ou virtuais, sem nexo com a vivência concreta das pessoas e das dinâmicas territoriais. Números, tendências e indicadores substituem o contacto directo com as gentes das feiras, os contribuintes, os pensionistas e os cidadãos em geral. Num ápice, os protagonistas políticos entram em realidades irrevogáveis, por exemplo, no mundo animal da ornitologia.
“Aves de agoiro que puxam o país para baixo”, verberou Paulo Portas perante a ausência de aves canoras da oposição a elogiar os 13% de desemprego, depois da subida no primeiro trimestre de 2015, o contínuo fluxo de emigração, os estágios profissionais e afins do Instituto de Emprego e a anulação da inscrição de desempregados não subsidiados sem aviso prévio. Tudo a limpar estatísticas. O governo PSD/CDS tem sido de uma competência sem limites a cortar nos rendimentos, a aumentar a carga fiscal e a concretizar os negócios das privatizações enquanto desmantela o Estado, mas não passa de uma ave canora desafinada nos apoios sociais. Não falamos do chilrear dos cortes cegos nas prestações sociais, mas dos rituais de propaganda. A majoração de 10% do subsídio do desemprego dos casais sem trabalho, anunciada com pompa, só chegou a cerca de 14 mil portugueses num universo de 316 540 desempregados casados. A tarifa social de electricidade e de gás natural destinava-se a 500 mil portugueses, chegou a 95 mil.
Não é de ave de agoiro dizer que, enquanto se discutem mais cortes de 600 milhões de euros nas pensões para 2016, com que Passos e Portas se comprometeram em Bruxelas, ninguém fala da introdução de um tecto nas prestações sociais que consta do Orçamento do Estado para 2015. Mais um corte de 100 milhões no subsídio social de desemprego e no rendimento social de inserção. O corte dos 600 milhões pode ser impedido pelo voto nas legislativas, o de 100 milhões corre o risco de ser concretizado num qualquer impulso da actual maioria.
É de ave migratória o ministro Poiares Maduro vir agora desvalorizar os monumentais fluxos migratórios de milhares que tiveram de procurar fora do território nacional as oportunidades de emprego que não tinham cá dentro. O que choca não é apenas a diferença de dados sobre o volume da debandada, mas a insensibilidade do ministro perante os jovens mais ou menos qualificados que abandonaram Portugal sem o retorno no horizonte ou as famílias divididas que se relacionam pelo Skype. É mais um exercício de ave canora, sem pingo de respeito pela dignidade humana, que contraria os dados enunciados pelo Observatório da Emigração e a conversa de Passos Coelho: “milhares e milhares de pessoas que tiveram de deixar o país”.
É de ave rara um ministro da Economia mandar recados na praça pública aos concorrentes da privatização da TAP que a maioria quer impor, saber–se que o inquérito sobre a “lista VIP” do fisco foi conduzido por uma ex-adjunta de um membro do governo ou que a coligação quer aprovar legislação que impeça as nomeações em período de campanha, depois de o governo PSD/CDS ter nomeado vários dirigentes, por vários anos, nos últimos meses.
O registo de Passos e de Portas nos próximos meses será o das aves canoras, num esforço encantatório para fazer esquecer que nos últimos anos houve uma sustentada presença de aves de rapina. Sem respeito pela dignidade humana, pelo cidadão e pela certeza e a segurança que um Estado de direito democrático deve garantir.
Depois de tantos sacrifícios impostos e de profusos cortes cegos em registo de ave de rapina, a fragilidade dos resultados obtidos está ao nível das aves de capoeira. Ornitologia à parte, este é o tempo de afirmação das propostas e dos protagonistas da nova maioria para Portugal, da alternativa de confiança do Partido Socialista. Continuidade, com mais do mesmo, ou a mudança, com uma maioria absoluta do PS, imune aos humores presidenciais.
Mais do que do canto dos pássaros, este é o tempo das pessoas. De mobilizar e de gerar confiança.
Membro da comissão política nacional do PS. Escreve à quinta-feira