A história de “Tudo o Que Conta” é a de Philip Bowman, veterano da marinha e editor, militar e dado aos livros. ComoJames Salter, o autor da história, o escritor que chega agora traduzido a Portugal pela primeira vez. Um romance que é uma espécie de memória de uma vida que dá voltas e voltas, engana o tempo e foge das regras, com um homem que queria ser maior que tudo.Quase nos 90 anos, Salter não se metia no meio de um romance há mais de 30; voltou porque sim, nós aproveitamos e lançamos-lhe algumas perguntas à distância. Continua em Bridgehampton, Nova Iorque. Não se preocupa com mais livros, ainda que os queira escrever. É um dos mais habilidosos entre as letras americanas mas tem consciência de que nem todos sabem. Mas está tudo bem, tem outras coisas que o preocupam. Poucas.
Porquê tanto tempo para voltar a escrever um romance? O último, “Solo Faces”, publicou-o em 1979…
Agora que penso nessa questão, acho que provavelmente estava a desperdiçar tempo, nada mais do que isso. Escrevi uns dois ou três livros durante esse intervalo mas é engraçado nenhum deles ter acabado em romance. Depois de tudo isto, cheguei a um momento em que pensei “as pessoas esqueceram-se de mim”. E decidi que não queria que isso acontecesse comigo.
Romances, é o que mais gosta de ler? Ou na verdade não tem preferência quanto ao género literário?
Durante todo este tempo li muito, é uma coisa a que não consigo escapar. Talvez ler um romance, um bom romance, muito bem escrito, talvez seja um dos maiores prazeres que podemos ter, um dos melhores acontecimentos que podem preencher os nossos dias. Mas devo dizer que ler qualquer coisa bem escrita é uma alegria. Uma boa história num jornal, por exemplo, é difícil arranjar melhor.
As referências militares continuam presentes nos seus livros. A vida militar é demasiado marcante para ser ignorada ou é apenas um bom tema sobre o qual escrever?
Talvez um pouco dos dois. Sentia-me confortável na Força Aérea, gostei de lá estar. Estava sempre acompanhado de muitos outros pilotos, alguns eram já amigos muito próximos. Adorava aquele som dos motores dos aviões a trabalhar, aquele arranque. E estava a comandar homens… Voar em tempo de guerra foi como um acto de masculinidade, algo que me definiu, claro que sim. Há um parágrafo no meu livro “Burning The Days” [memórias publicadas originalmente em 1997] que começa assim: “Uma vez estive num jantar no qual uma mulher me perguntou o que raio é que eu vi na vida militar…” Depois está tudo lá, tudo explicado. E não consigo fazer melhor. Mas não podia ser escritor e um oficial militar com uma carreira, tudo ao mesmo tempo não. São coisas que simplesmente não vão bem juntas. Tive de escolher e escolhi a escrita.
“As coisas habituais não têm menos significado que as outras, o que é preciso é ter noção do valor de cada uma”
Em “Tudo o Que Conta” há outro elemento fundamental, a viagem através do tempo que os protagonistas fazem. A memória é também uma personagem.
A memória é tudo. Sem ela ninguém vive de facto. O tempo passou, claro que sim, e não há nada a fazer quanto a isso. Mas o que aconteceu durante esse tempo? Com quem estivemos enquanto o tempo passava? O que é que essas pessoas fizeram e o que é que nós fizemos? Onde estávamos enquanto determinado acontecimento ocorria? Será que toda a gente consegue lembrar-se destas coisas? Conseguimos recordar o que aconteceu e como aconteceu e descrever isso em palavras? A vida não pode ser desfocada, não pode estar agora no meio da névoa. A memória é a única coisa real que nos pertence.
Mas isso requer também que coisas aparentemente insignificantes ganhem uma importância que não é óbvia. Como transforma o dia-a-dia banal numa história única?
Bom, isso faz parte das aptidões de um escritor, estar atento e ver as coisas pelo que são. As coisas habituais não têm menos significado que as outras, o que é preciso é ter noção do valor de cada uma, é importante estarmos alertados para isso.
Já admitiu que este pode ser o seu último livro. Não é demasiado assustador dizê-lo em voz alta?
Percebo… Mas o que é preciso é compreender que estou com 80 e muitos. Essencialmente, seria um pouco ridículo andar por aqui a pensar no meu próximo livro. Quero sempre pensar que vou escrever mais um livro, gostaria de o fazer, claro que sim. Mas não me assusta nada pensar que posso não conseguir fazê-lo.
Ao longo de todos estes anos assinou uma obra que lhe tem valido elogios atrás de elogios. Mas, ao mesmo tempo, é referido muitas vezes como um “escritor de escritores” ou “o melhor escritor que ainda não conhecemos”. Isto não quer dizer que poderia ter tido um percurso mais mediático e vendido mais livros?
Pensando um pouco no assunto, é fácil chegar à conclusão de que podia ter feito mais para me promover a mim e ao meu trabalho. Sei bem que escrevo de uma maneira que requer um determinado nível de compreensão por parte do leitor e talvez esse nível seja um pouco alto, ainda que não seja nada excessivo. E a expressão de que usam e abusam sobre mim, a tal do “escritor dos escritores”, pode querer dizer que talvez tenha andado a escrever bem de mais. E é engraçado que nunca ninguém diz que a escrita é “demasiado elaborada” ou “pomposa” ou “cuidada”, apenas que é, de certa maneira, boa de mais. Felizmente, é curioso ver como esta ideia sobre mim está a morrer. E por alguma razão tenho mais leitores do que alguma vez tive.
E tem ideia de que leitores são esses, de quem o lê, que importância têm os seus livros?
Só consigo ter alguma noção disso através de cartas que os meus leitores me enviam, alguns, e, claro, lendo as críticas que escrevem sobre os meus livros. Naturalmente também há todo aquele conjunto de coisas que, ao longo dos tempos, ouvi dizer sobre mim. Mas a verdade é que é difícil avaliar isso. É difícil perceber se devo levar tudo isso a sério ou não. Mas isso deve ser normal para qualquer escritor, não me parece que seja fora do comum. E há determinadas características de um livro que podem ter mais resultados nesse sentido.
Características que não são as suas?
Um bestseller que esteja carregado de emoção, especialmente se for escrito por uma mulher, vai ter de certeza uma resposta enorme dos leitores junto dos quais a obra terá feito verdadeiramente a diferença. Vai aparecer na Oprah. E essa mesma resposta será ainda maior quando o livro for transformado em filme, aí sim, haverá um resultado notável. Mas esse mundo é completamente diferente.
Este é o seu primeiro livro publicado em português. O facto de ser americano influencia a maneira como chega a outros países?
Não é difícil ser um escritor americano em qualquer país fora dos EUA, ter obras publicadas pelo mundo. A América, e a cultura americana, são conceitos bastante familiares para quase toda a gente. Já o contrário não é verdade, embora muitos autores do Médio Oriente estejam a viver uma fase de bastante popularidade nos Estados Unidos actualmente. O que é muito importante aqui é a tradução, é um elemento fundamental. Para alguns livros pode não fazer diferença, mas para outros, os meus incluídos, é da maior importância. Uma tradução demora tempo e custa dinheiro. Um livro que seja publicado por uma editora pequena, num país relativamente pequeno e para um número limitado de leitores, é provável que acabe por resultar apenas numa aproximação àquilo que o escritor realmente escreveu.
O “The Hunters” continua a ser uma referência habitual sempre que aparece o nome “James Salter”. Terá sido também pela adaptação ao cinema, o efeito Hollywood?
Talvez, mas a verdade é que me deixei de filmes.